Esse é para comemorar, pois concretiza alguns anos de estudo e discussão com Márcio e, mais recentemente, Thiago.
Em breve, teremos a publicação de uma tradução para o português – o JIME é uma revista internacional produzida por uma editora comercial, mas com uma política de acesso aberto, então é divulgada sob uma licença Creative Commons, ou seja, podemos republicar, traduzir, enfim, divulgar o trabalho sem termos que pagar royalties (por nosso próprio trabalho…).
O artigo trata da enraizamentos históricos de ideias atuais da EdTech – deixo, abaixo, o abstract, e convido os interessados para lerem o trabalho!
Although automation is not a novelty, high hopes are currently pinned on more and more ingenious devices built with Artificial Intelligence (AI). AI has become a key discussion point in the agendas of governments and multinational agencies, with particular interest in educational applications. This article explores parallels between ideas surrounding AI in education and conceptions proposed in the 17th century by Jan Amos Comenius, known as the father of modern education. Drawing upon illustrations from ongoing research that takes metaphor as its core analytical category, the piece assumes that metaphors are not mere stylistic elements, but strategic persuasive devices. Comenius’ didachography, a portmanteau coined in his 1657 Didactica Magna to describe an inclusive educational system, relies heavily on metaphors that suggest remarkable similarities with contemporary EdTech rhetoric, especially on AI-related developments. Whilst exemplifying that ideas and premises entailed in current discourses on EdTech may hark back to centuries-old ideas, the paper argues that, despite taking on varying, contextually situated linguistic expressions, underlying metaphors appear to have endured from Comenius’ time to support the advent of an educational system poised to automate teaching and, thus, dispense with a key part of his scheme: the teacher. In closing, the piece suggests that we may need to acknowledge the contingent nature of teaching and learning, perhaps accepting that key aspects of what makes us human may always resist engineering.
Comenius é apontado, nos livros de História da Educação, como o fundador da pedagogia moderna. Em sua Didactica Magna, publicada em latim em 1657, o autor propôs uma forma de organização detalhada como arcabouço para um sistema educacional inclusivo, um modelo baseado em metáforas e analogias relacionadas à produção manufatureira em expansão em sua época. Este artigo discute a proposta de Comenius como uma solução técnica para a democratização da educação que se mostra uma importante precursora de formas de pensar a relação entre a educação e a tecnologia na contemporaneidade. O texto examina aspectos da contribuição de Comenius a partir de uma perspectiva inspirada na obra de Lewis Mumford, historiador e filósofo da tecnologia. Em particular, toma o conceito mumfordiano de “megamáquina” para discutir a “didacografia” comeniana, que é apresentada na Didactica em uma analogia detalhada entre a tipografia e a sala de aula. Nessa ótica, o sistema educacional de Comenius seria uma megamáquina composta essencialmente de seres humanos mecanizados, embora não prescinda de artefatos como modelos ou mesmo antecipe a perspectiva de mecanizações mais radicais.
Comenius é um personagem fascinante, um bom “lugar” para começar a desvelar enraizamentos históricos de ideias que sustentam a tecnologia educacional contemporânea, tomando metáforas como eixo teórico fundamental.
Baixei e comecei a ler (levarei um tempo para finalizar, devido a outras demandas, mas ontem consegui dar conta da introdução e da conclusão), e a introdução sugere que Weller seguiu a linha de uma proposta que comentei em uma postagem anterior: o uso criativo e lúdico de metáforas. Ele anuncia o seguinte (p. 12):
This is not primarily a book about metaphors, or metaphorical reasoning, but a book of metaphors.
Tenho alguns “livros de metáforas” (nenhum relativo a tecnologias educacionais) bastante divertidos – a leitura, então, parece promissora.
Dei uma olhada nas referências também, e identifiquei alguns textos que acho fundamentais nos estudos da metáfora na educação – como este (1998). A obra seminal de Lakoff e Johnson também está lá, na fundamentação teórica (em português, a excelente tradução do Mercado das Letras está indisponível aqui, mas encontrei aqui, ainda que a um preço meio assustador – como todos os livros no momento).
O autor parece ter privilegiado uma perspectiva instrumental da metáfora como ferramenta para o uso e implantação de tecnologias na educação. A palavra “ferramenta/s” (tool/s) aparece 71 vezes nas 199 páginas do livro (incluindo nessa contagem o material pré e pós-textual). A ver o que isso me dirá.
Dando uma diagonal rápida, vejo que Weller articula o livro a seu blog (um projeto que ele mantém há muitos anos) e a produções anteriores (em particular, seu livro The Digital Scholar). Também me parece haver um foco na Educação Superior, em particular, a distância (mais uma articulação do autor, aqui, a seu local de atuação), e um capítulo dedicado ao online pivot, que chamei de “virada on-line” no início da pandemia.
Tentarei ler logo (não deverá ser difícil, pois a escrita dele é sempre objetiva e fluente) e resenhar.
A ideia é bem simples: apesar do otimismo em torno das novidades da indústria da EdTech e suas visões luminosas para o futuro da educação, não podemos deixar de lado o passado, pois ele tem muito a nos ensinar…
Esse tem sido o mote que sustenta o trabalho de Audrey Watters (ou sustentou – recentemente, a escritora abdicou de seu título de Cassandra da EdTech – como sempre, a vida dá jeito de se impor sobre nossos planos, escolhas e desejos… De qualquer jeito, seu excelente blog continua no ar). Como destaca Selwyn, há relativamente pouca pesquisa de cunho histórico na área dos Estudos Críticos da Educação e Tecnologia. No artigo, o autor reúne alguns trabalhos e explora os argumentos de Johannes Westberg em torno da importância da pesquisa histórica na educação. O artigo de Westberg está disponível aqui.
Estou ainda coletando informações sobre pesquisa relevante conduzida no país (há!) – em breve devo ter, com o auxílio de uma orientanda, uma bibliografia para compartilhar aqui.
Participei ontem de uma mesa coordenada por Murillo Marschner, professor do Dept. de Sociologia da USP, junto com o Luis Junqueira, sócio-fundador da Letrus, plataforma de tecnologia educacional que utiliza Inteligência Artificial (IA) para auxiliar no letramento de estudantes
Nesta semana que passou, fui apresentada a uma novidade que não é tão nova, afinal: as plataformas de geração de paráfrases. Um detalhe interessante é que foram alunos de graduação que me indicaram dois exemplos – segundo disseram, usam para ajudá-los a reescrever e compreender (talvez essa parte tenha surgido ali, no ato da confissão não solicitada?) trechos que não entendem em textos complicados.
Ainda não sei o que pensar sobre isso, mas curiouser and curiouser, entrei no Google Scholar para ter uma noção dos pontos de discussão no momento, e fiz uma busca por [“paraphrasing tools” AND learning]. Desmarcando a caixa com “include citations”, sobraram 446 resultados. Restringindo o ano de publicação para 2017-2021, sobraram 80 resultados.
Olhando por alto, saltaram-me aos olhos os trabalhos relativos ao “problema” do plágio, alguns focalizados no desenvolvimento de sistemas para apoiar a detecção de plágio a partir da identificação de paráfrases geradas automaticamente, o que me pareceu bem esquisito. Além disso, há também também a questão da venda de serviços especializados de escrita de trabalhos acadêmicos, automatizados ou não. Esta plataforma, por exemplo, promovida pela Google Ads, segue o modelo Freemium – serviço básico gratuito com a monetização de serviços extra (pretensamente, pois necessidades vão sendo criadas ao longo da interação com o artefato, por exemplo, jogos).
Tenho uma forte inclinação a achar que as discussões sobre plágio na educação que partem de perspectivas moralizadoras (“é errado e, assim, repreensível”) ou legalistas (“é ilegal”) afastam-se de aspectos que me parecem fundamentais: questões relativas à forma e ao papel da avaliação, questões relativas ao que se pode esperar de estudantes em diferentes momentos de sua formação, questões sobre o papel da imitação, mesmo, no processo, enfim, questões que têm a ver com aprendizagem – o processo, nossas concepções dele, bem como as dos estudantes, tudo isso concretizado em práticas.
Usei learning na busca porque queria ver se havia discussão em torno de algum desses assuntos. Precisaria fazer outras buscas (como digo aos meus alunos de Metodologia de Pesquisa: “usem bases acadêmicas melhores”…), então, por hora, permanece comigo a ideia de que o uso desses geradores seria mais uma forma de terceirizar (ao menos, aspectos de) esse processo.
Contarei com a presença de meu precioso parceiro de pesquisas e escritas, o Prof. Márcio Lemgruber, e do Prof. Diogo Gurgel, do Dept. de Filosofia da UFF, estudioso das teorias da metáfora.
Pretendemos gravar a discussão e disponibilizá-la posteriormente no Canal do YouTube do Departmento de Educação da PUC-Rio. Avisarei aqui quando isto for feito, caso haja interessados que não possam assistir ao vivo.
O link será enviado para os e-mails cadastrados no dia anterior – aguardo você lá!
Se quiser nos ajudar a divulgar, baixe aqui o cartaz.
Publiquei anteriormente alguns posts sobre questões gerais pertinentes à educação durante a pandemia (reunidos aqui), e cheguei a mencionar que escreveria, futuramente, detalhes sobre como estava trabalhando na graduação. Pois tentarei fazer isso agora, partindo de rascunhos e anotações que fui fazendo ao longo de 2020.
Tanto no primeiro, quanto no segundo semestre de 2020, fui alocada a uma disciplina sobre tecnologias e educação. É uma matéria obrigatória do curso de Pedagogia e eletiva das outras Licenciaturas e do domínio adicionalTecnologias e Mídias Digitais da universidade, e, por isso, relativamente popular. Os grupos, porém, eram bastante diferentes: o de 2020.1 era composto, predominantemente, por alunos de 1o e 2o período da Pedagogia. Em 2020.2, a maioria era de alunos das outras Licenciaturas (Biologia, Letras, etc.), muitos já nos dois últimos períodos de seus respectivos cursos, ou seja, era uma turma de estudantes mais maduros, digamos. De qualquer forma, as turmas que tenho tido na disciplina tendem a ser fortemente heterogêneas de diversas formas, e preciso sempre considerar, também, como parte dos propósitos de qualquer ação, a necessidade de acomodar uma ampla gama de habilidades, possibilidades e limites.
No início de março, tive, com a turma daquele semestre, alguns encontros presenciais ao longo das duas semanas que se passaram até ser decretado o fechamento do campus da instituição, e já estava com quase todos os nomes e rostos em mente. Com a turma do semestre seguinte, acabei por conhecê-los apenas como nomes escritos sobre um retângulo preto, ou fotos de rostos sorridentes, pois muitos preferiam não abrir suas câmeras, ainda que participassem, ocasionalmente, por áudio. Ou seja, foram experiências totalmente diferentes, não apenas porque foram grupos de pessoas diferentes, com expectativas também bastante diferentes, mas, crucialmente, porque não foi possível o usual encontro de “acolhimento” presencial que as “boas práticas” de EaD tendem a defender.
A lógica que adotei para pensar inicialmente a adaptação da disciplina para a situação não-presencial baseou-se em dois eixos fundantes: (1) inclusão; (2) articulação “teoria-prática”. Por um lado, tomando como base uma espécie de máxima que orienta a determinação de requisitos técnicos para cursos em EaD (“a corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco”), pensei em adotar várias mídias alternativas para apoiar contatos pessoais, com preferência por mídias assíncronas, que são menos custosas em termos de consumo de dados (alguns pacotes de dados para celulares oferecem acesso ilimitado a alguns serviços). Por outro lado, objetivando promover uma forma de articulação “teoria-prática” baseada na apropriação de ideias acadêmicas em exercícios de leitura de mundo, propus uma série de atividades que combinaram trabalho conceitual (leituras e discussões de textos acadêmicos) com buscas e discussão de matérias on-line sobre assuntos do momento vivido (em duplas ou pares), complementadas com reflexões individuais.
Comecemos, porém, pelas questões mais instrumentais.
Para a turma do primeiro semestre, na correria que se sucedeu à implantação da quarentena no estado do Rio de Janeiro, acabei utilizando dois grupos no Facebook e um grupo no WhatsApp, além do espaço no Google Drive que já havia organizado na preparação para o semestre. A universidade dispõe de um sistema de administração acadêmica que permite envio de e-mails em bloco para turmas inteiras, que é bem útil para os professores (não temos que criar listas separadamente), mas nem sempre produtivo (pois sistemas de e-mail diferentes às vezes direcionam as mensagens recebidas por esse sistema para a caixa de spam). Utilizo esse sistema com parcimônia, mas, no início do semestre, não houve outro jeito.
Acho que levei duas semanas até conseguir que todos compreendessem como seria a nova dinâmica e acessassem todos os espaços, seguindo as seguintes etapas:
Primeiro contato com os alunos por e-mail em bloco (primeira semana da quarentena) para verificar a situação de cada um no tocante a equipamento, acesso à internet e espaço para trabalho;
Com base nas informações obtidas nesse levantamento, montei um grupo de WhatsApp reunindo toda a turma (tratava-se da única mídia da qual todos já eram usuários), para possibilitar um acolhimento inicial e a (re)organização das atividades; a primeira atividade foi realizada com apoio desse aplicativo;
Na sequência, criei os dois grupos (secretos) no Facebook (a única aluna que não era usuária dessa plataforma gentilmente se prontificou a criar um perfil para acompanhar a turma): um grupo para trocas informais (“Café com Bolo”, aberto para postagens por todos), outro para o trabalho na disciplina (no qual apenas eu poderia postar, mas todos poderiam comentar), e todos os trabalhos e discussões foram conduzidos nessa plataforma (com apoio de e-mail, WhatsApp e ligações telefônicas, em alguns casos);
Videoconferências por Zoom foram realizadas em momentos específicos do semestre (sessões de uma hora, com a turma dividida em grupos, pois eram muitos), com fins, basicamente, de cultivar relações e dar uma espécie de apoio “pastoral”. A utilização de e-mail foi minimizada (a pedido dos próprios alunos), e o WhatsApp permaneceu em uso (uso esporádico do grupo criado inicialmente, mas uso continuado para comunicação um-a-um). Foi mantida a pasta no Google Drive que havia montado antes do início do ano letivo, contendo o programa da disciplina e um repositório de todas as leituras (básicas e complementares) em arquivos PDF.
Para o segundo semestre, recebemos uma orientação institucional no sentido que procurássemos concentrar nossos usos de espaços on-line no AVA interno (Moodle), gerido e mantido pela unidade que coordena a oferta de EaD da universidade. A plataforma realmente oferece uma grande vantagem com relação à gestão da avaliação (em 2020.1, recebi trabalhos via múltiplos canais, e a trabalheira para organizá-los foi insana, pois havia entregas quinzenais individuais de uma turma de 36…). Além disso, o agendamento e acesso ao Zoom foram integrados no ambiente, o que é bem útil também. Então, para a turma do segundo semestre, o espaço ficou assim:
Preferi a configuração de blocos, que deixa a tela mais limpa e funciona bem no celular também, e usei ícones e indicações claras de temas e datas para criar um mapa/guia do curso. Ao clicar em um bloco, abre-se uma janela com detalhes; por exemplo:
Nada disso é novo (são pequenos detalhes de “design instrucional“), e o uso dos arquivos pdf é algo que muitos da área do e-learning dirão ser uma “má prática”. Aqui entram as especificidades do contexto e a necessidade de flexibilidade, tanto no acesso a orientações e textos, para que pudessem ser lidos sem que o aluno estivesse necessariamente on-line, quanto no tocante a prazos. O acesso à internet no Brasil é mesmo bem frágil, e tive que reagendar alguns encontros (com a turma de pós e com o grupo de orientandos) por total falta de acesso (até o 4G pelo celular estava restrito nessas ocasiões). Outra coisa é que os layouts “quebradinhos” de treinamentos on-line não são, na minha opinião, apropriados para toda e qualquer experiência educacional on-line. De qualquer forma, elementos on-line e o off-line, síncronos e assíncronos sempre precisam ser pensados de forma integrada, e precisamos estar sempre prontos para improvisar alternativas.
OK, esses são os ossos do ofício do trabalho on-line com infraestrutura flaky – mas e as questões pedagógicas?
Bem, aqui me considero bastante privilegiada com a disciplina: se mídias e tecnologias, antes do início da pandemia, estavam em pautas de discussão específicas e eram ainda tratadas por muita gente como um “adendo” à formação de professores, as coisas mudaram radicalmente com o fechamento das instituições de ensino (em todos os níveis). Nesse contexto, os assuntos dos quais usualmente trato na disciplina tornaram-se fundamentais de uma forma não imaginada antes.
Pensei, então, que o ideal seria adaptar, de forma bastante explícita, o material da disciplina ao momento que estávamos vivendo, aproveitando as vivências de aprendizagem remota dos próprios alunos, bem como elementos do contexto mais amplo no qual estávamos inseridos, como fonte de material a ser integrado no trabalho da disciplina.
A partir de uma estrutura de atividades com produtos a serem entregues semanal ou quinzenalmente para fins de avaliação continuada, consegui manter o direcionamento que havia determinado ao montar o programa original da disciplina, que combinava elementos de “aprendizagem entre pares”, “sala de aula invertida” e “aprendizagem por projeto”. Dessa forma, conduzi os alunos em reflexões sobre a experiência de aprender a distância como base para encorajá-los a repensarem suas concepções sobre aprender, ensinar, a aula, a sala de aula e os objetos que fazem parte do cenário da educação (digitais ou não). E como faço sempre, encorajei-os a manterem um Diário com anotações, questões, recortes de leituras (e de materiais midiáticos sobre os assuntos tratados), para a composição de um portfólio a partir do qual seria feita a avaliação.
Para ilustrar, compartilho aqui uma das atividades conduzidas, relacionada ao tema “letramento midiático”. O objetivo da atividade era proporcionar aos alunos uma oportunidade de explorarem os problemas envolvidos na divulgação de “notícias enganadoras” (que incluem as famigeradas fake news), bem como, em particular, refletirem sobre o processo de verificação de informações. As orientações por escrito foram, subsequentemente, exploradas em discussão de forma a explicitar o pensamento pedagógico a sustentar a atividade. Dessa forma, os alunos também foram convidados a refletir sobre questões pedagógicas, ou seja, convidados a pensarem como professores (em formação, que é como sempre os trato). Assim, a discussão pode avançar não apenas em relação ao “conteúdo” (o tema), mas também à “forma” (o modo como a atividade foi pensada), o que me parece essencial em um contexto de trabalho com futuros docentes (e aqui incluo o pessoal da Comunicação que expressa o desejo de atuar na comunicação pública da ciência).
Nesse sentido, a avaliação na disciplina sempre contém, minimamente, um componente reflexivo, e, no segundo semestre, cheguei a um formato que achei bastante produtivo (e que manterei para o semestre atual, com alguns ajustes para melhorar a apresentação). As orientações estão aqui. A proposta envolve um elemento de role play que demanda a mobilização de conhecimentos em um contexto profissional imaginário, destacando a noção de que é o pensamento pedagógico que precisa orientar a ação docente, não a disponibilidade de mídias. Acho isso bem mais interessante do que uma prova ou mera atividade de produção (instrumental) de mídias (como vinha fazendo no laboratório que temos disponível para essa disciplina no presencial).
Uma coisa que não consegui, no final do semestre, foi fazer com a turma a avaliação da disciplina. Faço isso todo semestre usando como base este formulário, mas, confesso: cheguei ao final dos semestres de 2020 quase que inteiramente “sem gás”. Esse tipo de avaliação é uma forma importante de ação docente, pois, além de me dar subsídios para refletir sobre o que faço, também constitui uma oportunidade para os professores em formação sob minha responsabilidade pensarem sobre avaliação, que é um assunto em geral negligenciado. Surpreendem-se, quase sempre, com a proposta e com meus comentários sobre avaliação ser algo integral à aprendizagem, “instantâneos” que dizem alguma coisa sobre um processo, que é algo que se desenrola no tempo, mas não dizem tudo.
Há muito que eu poderia falar sobre essas experiências remotas, mas vou destacar alguns pontos que considero essenciais:
Como muita gente vem dizendo, não faz sentido simplesmente substituir horas-aula por horas no Zoom. Isso simplesmente deixa todo mundo exaurido. É preciso pensar em formas de manter o contato pessoal, claro, mas o contexto que estamos vivendo não é o que tínhamos antes, ou seja, as pessoas não estão em casa por vontade própria. E, em casa, as demandas também mudaram (aumentaram, para muita gente), inclusive, com o relaxamento do isolamento social, deu-se o retorno gradativo de muitos a seus respectivos locais de trabalho. Enfim, as circunstâncias dos alunos (e nossas!) são múltiplas. Aliás, câmeras fechadas refletem tanto as formas de se lidar com essa multiplicidade, quanto a questão perene da “presença sem presença”, mencionada no próximo item (no final de encontros no Zoom, sempre há remanescentes que parecem ter estado presentes dessa forma…).
Também como reza a cartilha da EaD, a aprendizagem não-presencial demanda muito mais autonomia e organização do aprendiz. Não acho, entretanto, que essa questão seja relevante apenas à aprendizagem remota: a distância apenas torna crítico um problema já existente. No campus, a agenda semanal dos alunos tende a girar em torno da presença em sala de aula. As próprias expectativas dos alunos parecem girar em torno da ideia de que só se aprende em sala de aula – mesmo admitindo que, com frequência, o estar em sala é apenas “de corpo presente”, em uma “presença sem presença”, ou seja, o aluno está suficientemente ali para evitar uma falta na pauta, mas, durante aquele tempo, passa a habitar algum “lugar feliz” em sua mente, alheio ao que se passa ao seu redor. Fora do campus, sem sessões de Zoom a substituir a hora-aula, fica mais óbvia a necessidade de organização. Em particular, no contexto de formação de professores, acho essencial mostrar não apenas que a sala não é o único local de aprendizagem, mas, crucialmente, que eles precisam se apropriar do processo de forma mais ampla. Precisamos lhes dar oportunidades para ensaiarem essa apropriação.
Por que não usei o Moodle no primeiro semestre? Sinceramente, porque não quis. Fui usuária do Moodle no passado, até cheguei a fazer uma instalação em um computador na época, e não gostava do excesso de parâmetros e controles. As coisas mudaram um pouco e realmente faz sentido, para alunos com todas as disciplinas em modo remoto, que haja um espaço único onde possam acessar tudo que precisam. Há, também, a questão da avaliação, que já mencionei acima. Mas ainda não entendo como podem defender o Moodle como “construtivista”, e tenho mil e uma objeções também relativas a questões de direitos autorais e direitos de imagem (tanto que, em geral, não gravo encontros no Zoom). Enfim, é uma solução de compromisso, no meu entender, um assunto para outra postagem.
Em momento algum quis dizer que o que estou fazendo é modelo para outras pessoas! Pelo contrário: no final do primeiro semestre, especificamente, recebi algum feedback bem negativo de um aluno (poucos participam da avaliação institucional dos professores). Creio que alguns (ou muitos, não saberia estimar) esperavam aquilo que acham que é a EaD: aulas gravadas. Eu, particularmente, acho aulas gravadas quase sempre bastante tediosas (recentemente comecei a acelerar a velocidade de playback de certos vídeos – é uma experiência horrenda, e creio que pagaremos um preço por isso, com tantos jovens adotando essa estratégia…). Na Open University, aliás, aulas gravadas foram abandonadas muito cedo na história da instituição, que foi favorecendo gêneros midiáticos mais criativos e interessantes, como docudramas, dramas históricos, animações etc. Enfim, isso seria mais um assunto para outras postagens.
Por fim, a questão mais importante: para que mais um postagem sobre experiências na educação durante a pandemia? Parece haver muitos gurus e “especialistas” de prontidão (principalmente para vender benditos “treinamentos”), e as postagens se multiplicam com dicas, estratégias, defesas de rótulos específicos, enfim, já nos aproximamos de uma forma de infoxicação dessas coisas. Nomes novos para coisas velhas, nomes velhos para coisas novas, enfim, a busca por estabelecer territórios não cessa nunca… Nesse contexto, acho válido lembrarmos de que, talvez, o que precisemos, é de experimentação, criatividade e, crucialmente, mais reflexão. Sim, é preciso saber “onde clicar”, mas isso se pode descobrir simplesmente clicando, lembrando que, neste mundo digital, é possível desfazer quase tudo. O que não dá para desfazer com facilidade são as expectativas e pré-concepções, nossas e de nossos alunos. Para tanto, é preciso reflexão, e, nisso, espero ter adicionado meus dois centavos do dia.
No 7o Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídias, que aconteceu on-line na semana passada, apresentei, junto com alguns dos integrantes do DEdTec, um relato sobre o trabalho que conduzimos em 2020.2: Uma experiência de formação com a ficção durante a pandemia: da distopia à esperança. Eis a proposta original:
Apesar da euforia em torno das tecnologias de internet como meios para manter as instituições educacionais em funcionamento durante a pandemia de covid-19, a realidade representada em relatos de jornais, blogs e artigos científicos é bastante diversa. Mundo afora, vidas estão sendo profundamente afetadas (ou, infelizmente, perdidas), e, no âmbito da educação em um país com desigualdades tão marcantes quanto o nosso, professores e estudantes têm enfrentado desafios, em alguns casos, intransponíveis. Mais do que nunca, talvez, a profissão docente se revela como uma das profissões do cuidado: somos formadores de seres humanos. Em particular, na crise que estamos vivendo, nossas propostas pedagógicas precisam superar uma visão “conteudista” do currículo e considerar as possibilidades e limites do aqui e agora, integrando-as, na medida do possível, em nossas ações junto aos nossos alunos.
Nesse sentido, esta proposta baseia-se em uma reflexão sobre uma experiência conduzida, no segundo semestre de 2020, com um grupo de estudantes em processo de formação para a pesquisa em Educação. Na esteira de experimentações anteriores (por ex., Ferreira et al. 2020; Rosado et al, 2015), e inspirada em literatura que explora o potencial da ficção como um recurso formativo (por ex., Aquino & Ribeiro, 2011; Lemos, 2016), a experiência em questão teve dois objetivos principais: (1) apoiar o desenvolvimento de criticidade acerca da relação entre a educação e a tecnologia, utilizando cenários ficcionais que exploram a relação entre humano e máquina; (2) proporcionar um espaço de discussão que possibilitasse a articulação entre o acadêmico e o não acadêmico, sobretudo o pessoal e o vivido. Nesse sentido, foram selecionadas algumas obras de ficção distópica como base do trabalho do grupo ao longo do semestre, complementadas com textos acadêmicos (incluindo Postman, 2005 [1985], Coeckelbergh, no prelo; Haraway, 2009 [1991], dentre outros).
As seguintes obras foram examinadas em encontros síncronos semanais: (a) Autofab, episódio do seriado Electric Dreams que revisita e atualiza, para o nosso momento de expansão da Inteligência Artificial e criação de robôs antropomórficos, o conto de Phillip K. Dick escrito na década de 1950, quando os temores da humanidade tinham por objeto a tecnologia nuclear; (b) Frankenstein, de Mary Shelley, um clássico da literatura gótica vitoriana considerado o precursor da ficção científica; (c) Metropolis, de Fritz Lang, um clássico do expressionismo alemão que, além de constituir um marco na história do cinema, permanece intensamente relevante em sua exploração da relação entre tecnologia e sociedade; e (d) Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, uma obra publicada em 1932 de notável presciência, que mantém viva sua atualidade, em particular, no que diz respeito às decorrências do avanço tecnológico para a reprodução biológica e sociocultural, conforme destacou Postman (2005 [1985]).
A apresentação aqui proposta irá abordar: (a) os fundamentos teórico-conceituais e a metodologia planejada para a experiência; (b) leituras do grupo a partir das obras (e articulações entre elas), focalizando em formas nas quais essas obras podem nos ajudar a compreender e questionar o contexto atual mais amplo no qual a educação se insere; (c) questões imbricadas nos processos comunicacionais remotos síncronos em um contexto considerado, em si mesmo, distópico. Nele, a experiência mostrou-se não apenas um exercício intelectual, mas sim uma exploração criativa e fortemente solidária, que acolheu e promoveu a reflexão individual e a construção compartilhada de significados em/sobre um contexto desafiador e circunstâncias, com frequência, delicadas. Assim, em uma perspectiva mais ampla, a experiência constitui-se em um exemplo de como a reflexão a partir de narrativas distópicas pode se tornar um alicerce para a humanização, a resistência e, quiçá, a esperança.
Palavras-chave: educação superior na pandemia; distopia; ficção científica; formação de pesquisadores
Referências
AQUINO, J.G.; RIBEIRO, C. (Org.). A Educação por vir: experiências com o cinema. São Paulo: Cortez, 2011.
AUTOFAC (Temporada 1, ep. 8). Electric Dreams [Seriado]. Direção: Peter Horton. Podução: Channel 4 Television Corporation e Sony Pictures Television, 2017. 1 vídeo (51 min).
COECKELBERGH, M. Antropologias do monstro e tecnologia: máquinas, ciborgues e outras ferramentas tecno-antropológicas. In: BANNELL, R.I.; MIZRAHI, M.; FERREIRA, G.M.S. (Org.) Deseducando a educação: mentes, materialidades e metáforas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, no prelo.
DICK, P.K. Autofab. In: DICK, P.K. Electric Dreams. Trad. Daniel Luhmann. São Paulo: Aleph, 2017 [1955].
FERREIRA, G.M.S. et al. Estratégias para resistir às resistências: experiências de pesquisa e docência em Educação e Tecnologia. e-Curriculum, v. 18, n. 2, p. 994-1016, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p994-1016 >. Acesso em: 15 jan. 2021.
HARAWAY, D. O manifesto ciborgue. In: Tadeu, T. (Org.) Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Trans. Tomaz Tadeu. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 [1991].
HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Trad. Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1979 [1921].
LEMOS, D.C.A. (Org.) Distopias e Educação. Entre ficção e ciência. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2016.
METROPOLIS. Direção: Fritz Lang. Produção: Erich Pommer. Alemanha / Finlândia: Universum Film / Yleisradio, 1927/2010. 1 DVD (153 min.).
POSTMAN, N. Amusing ourselves to death. Public discourse in the age of show business. 20th anniversary edition. Nova York; Londres: Penguin, 2005 [1985].
ROSADO, L.A.S. et al. De Metropolis a Matrix: arte e filosofia na formação de pesquisadores em educação. Leitura: Teoria e Prática, v. 33, n. 54, p. 97-110, 2015. Disponível em: < https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/371/272 >. Acesso em 15 jan. 2021.
SHELLEY, M. Frankenstein, ou o Prometeu moderno. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Hedra, 2013 [1818].
Os slides da apresentação podem ser baixados neste link.
Infelizmente, meu parceiro nessa aventura de trabalho com filmes e livros, o Prof. Márcio Lemgruber, não conseguiu estabilizar sua conexão à Internet na hora da sessão e, assim, não conseguiu participar, mas eu e Kadja Vieira, mestranda no DEdTec, fizemos a apresentação. Kadja criou o layout para os slides, deixando apenas alguns detalhes para eu finalizar, pois já tínhamos aproveitado a primeira sessão de discussão do grupo neste semestre para organizar as ideias, até porque há muita gente ingressando no grupo agora e achei importante darmos uma ideia ao pessoal novo sobre os caminhos que trilhamos no ano passado.
As perguntas que recebemos foram bastante interessantes e permitiram que elaborássemos um pouco mais as ideias, tanto sobre a experiência em si, quanto sobre as pesquisas em andamento. Gostaria, porém, de dar destaque às respostas dadas por minhas orientandas, que mostraram como a experiência tem sido, de fato, produtiva: como orientadora (professora, de forma mais geral), não espero que meus alunos saiam pelo mundo repetindo o que digo (aqui lembro sempre do amigo Alexandre Rosado, com quem compartilho um horror a sectarismos acadêmicos), mas que se apropriem das ideias com as quais têm contato por meu intermédio e, principalmente, que as questionem sempre. As palavras das três – Kadja, Juliana e Cristal – sugeriram que estamos mesmo a caminhar dessa forma, o que me deixou bastante satisfeita.
Quero também ressaltar o papel fundamental do Prof. Márcio no processo que tem permitido que nosso espaço de discussão vá se constituindo como um espaço livre, protegido, acolhedor e fortemente dialógico: temos uma crença compartilhada de que é mais importante dizer algo sobre o que alguém disse do que simplesmente repetir o que já foi dito, sempre, obviamente, de forma consistente com o momento de formação de cada um. Por outro lado, não abandonamos o papel que nos cabe, como docentes, no sentido de dar apoio e direcionamentos possíveis a cada um que embarque na construção desse caminho que pensamos ser a criticidade.
Tem sido um privilégio estar com ele e com todos que escolhem permanecer no grupo, e é desse estar junto, mesmo que on-line, que a esperança vai se nutrindo – como disse o escritor Ítalo Calvino no fechamento de seu maravilhoso As Cidades Invisíveis,
Como fiz para uma roda de conversa anterior, montei um roteiro para a minha fala e alguns slides com imagens para acompanhá-la, que copio abaixo. No final da postagem, há alguns comentários adicionais que tentativamente respondem algumas perguntas que não conseguimos discutir na hora.
Print de tela mostrando a equipe envolvida no evento
Boa tarde a todos, e muito obrigada por estarem aqui hoje. Quero agradecer também ao pessoal da Associação Brasileira de Ensino de Biologia pelo convite para esta conversa, em especial, aos Profs. Pedro Teixeira, Rodrigo Borba e Cristiana Valença.
Bem, nossa questão disparadora é a seguinte: “O que cabe no ensino remoto?”
Como a Cristiana disse, eu trabalhei muitos anos em uma instituição a distância fora do país, mas eu quero dizer, logo de saída, que não tenho “pérolas de sabedoria” para simplesmente “passar” para vocês.
Já vou explicar, então não se desanimem ainda!
A Educação a Distância que eu conheço bem é uma educação imaginada para um tipo específico de estudante: um adulto independente, relativamente amadurecido como aprendiz e intrinsicamente motivado para aprender. Há muita discussão e muita coisa escrita sobre essa modalidade, mas, mesmo assim, ainda há muito que não compreendemos. A EaD tem mais de um século de história, e a educação em nível básico (ou compulsório) figura nessa história em termos de casos extraordinários, em geral, como complemento, em alguns casos, suplemento e, raramente, como modalidade principal na formação de crianças e jovens.
Então, por que não vou lhes oferecer “pérolas de sabedoria”? Porque creio que não existe isso no tocante à educação remota de crianças e adolescentes. Na verdade, penso que vocês, professores da EB, em particular, cada um em circunstâncias próprias, em escolas diferentes, em locais diferentes, são uma espécie de “pioneiros” em um cenário muito complexo. A situação que estamos vivendo na ES é complicada, mas acho que o desafio que vocês estão enfrentando é muitíssimo mais difícil.
Pois, o que tentarei fazer é mostrar alguns pontos que creio serem fundamentais à educação não-presencial, de forma geral, bem como algumas questões que, acredito, podem ser úteis à conversa que teremos daqui a pouco.
Gostaria de destacar que há múltiplas formas de nos referirmos a essa educação na qual professor e alunos não estão no mesmo lugar, ao mesmo tempo: “Educação a Distância”, “Educação Online”, “Educação Não-Presencial”, “Educação/Ensino Remoto/a”, “Ensino Digital” e muitos outros. Enfim, os rótulos são variados, mas penso neles como diferentes modelos (e territórios acadêmicos) dentro desse universo mais amplo de uma educação sem a copresença física de professor e alunos. Não é fácil escolhermos uma denominação para o que estamos fazendo, também porque há implicações comunicacionais, relevantes porque a EaD, em geral, não tem a melhor das reputações no país, e nomes diferentes terão maior ou menor apelo, em particular, para quem financia a experiência (por exemplo, pais e responsáveis).
A questão mais básica que precisamos considerar relaciona-se às enormes desigualdades que caracterizam o nosso país. Se estamos vivendo uma tempestade durante esta quarentena, é ingênuo achar que estamos todos no mesmo barco. Não estamos. A EaD tem uma história associada a políticas e programas de ampliação do acesso à educação, que têm sido associadas a programas de criação de infraestrutura tecnológica para garantir o acesso dos estudantes. Historicamente, tivemos os correios, o rádio, a televisão, e só bem recentemente a Internet. Nosso momento é da Internet como tecnologia fundamental, então questões de acesso são básicas. Aqui, acho importante ressaltar que são questões que fogem à nossa alçada como professores, mas leio e ouço histórias de professores fazendo coisas incríveis, com grande custo pessoal, para ajudar seus alunos, e isso me revela, com clareza, a face de “cuidadores” às vezes esquecida da nossa profissão. É essa face que mostra o papel da empatia em nosso ofício, do pensar no outro que é diferente e está em condições diferentes das nossas.
As questões que nos cabem mais diretamente, então, são outras, que tendem a escapar às perspectivas macro dessas grandes (e, é claro, importantíssimas) iniciativas. As imagens que estou projetando mostram as areias de uma praia em Maui usando lentes diferentes: de um lado, uma macrofotografia; de outro, uma microfotografia, ambas do mesmo objeto. São imagens que uso para discutir essas mesmas questões com meus alunos, que sempre ficam maravilhados ao ver o que tendem a chamar de “diversidade” refletido em fotografias. Sinto que eles apreciam quando digo que os vejo, cada um, como um cristal colorido, único, diferente dos demais.
No presencial, lidamos com turmas que são heterogêneas, e os alunos que mais nos demandam geralmente são aqueles cujas habilidades se afastam mais de uma “média”, digamos: os que têm mais “dificuldades” e os que têm mais “facilidade” em responder às nossas demandas. Esses nos pedem mais tempo, mais criatividade, enfim, nos fazem explorar e, talvez até ampliar, nossos respectivos repertórios. Em sala, para colocar nossos planos de aula em prática precisamos sempre de uma boa dose de adaptação e improvisação, em tentativas de responder aos desafios que aparecem ali, a cada momento, com aquele grupo que temos diante de nós.
Esses repertórios estão profundamente imbricados em nossa linguagem cotidiana. Por exemplo, falamos de nossos “currículos” como constituídos de “conteúdos” que “expomos”, “passamos” ou “transmitimos” aos alunos, que aprendem “absorbendo” ou “digerindo” o que lhes oferecemos. Trata-se, aqui, de metáforas, compreendidas de forma bem mais ampla do que meras figuras de linguagem ornamentais. São, de fato, ideias muito poderosas que constituem as bases sobre as quais construímos nossas ações como professores.
Como professores de Biologia, vocês criam seus planos de aula a partir de ementas integradas nas matrizes curriculares de suas respectivas escolas. A atuação de cada um segue diretrizes e concepções consistentes com as demandas da sua área e da escola (ou escola) onde atua. Mas, como professores, nossa atuação revela mais: nossas ações materializam nossas formas de pensar sobre o que é ensinar, e revelam o que pensamos ser aprender. Em outras palavras, nossas concepções de ensinar e de aprender, com frequência tácitas, estão sempre em jogo e “à mostra”, digamos, em nossas ações.
Então, quer seja a partir de metáforas ou de outros mecanismos, nossas concepções se concretizam na aula expositiva mais tradicional, no âmbito da hora-aula em sala, nas baterias de exercícios, nos tipos de atividades ou problemas que propomos aos alunos, enfim, em tudo que fazemos. Normalmente não refletimos sobre essas bases, afinal, o cotidiano já é corrido o suficiente, mas precisamos dessa reflexão agora, pois, na educação remota, tudo se complicou: novos problemas surgiram, e problemas que já existiam ficaram aparentes.
Creio que estarei “chovendo no molhado”, principalmente para aqueles de vocês cujas escolas não fecharam inteiramente, mas acho que vale a pena chamar a atenção para o problema da hora-aula. Historicamente, a EaD passou por fases diferentes associadas às diferentes possibilidades das tecnologias disponíveis: na era do impresso, falou-se da “aula escrita”; a “aula gravada” chegou depois, com as possibilidades do rádio e da TV; mais adiante, em meios a processos de midiatização da educação, passou-se a falar da “aula dramatizada”, por exemplo, fruto de parcerias entre professores e produtores de TV/cinema. Agora, temos a internet e os softwares ou apps, e muita gente pensa que, com relativa facilidade, podemos substituir a experiência da aula presencial com aulas gravadas em cima de slides no PowerPoint ou, simplesmente, uma “cabeça falante”, criando vídeos caseiros para os alunos assistirem e, posteriormente, completarem folhas de exercícios. Mesmo com aulas gravadas com alta qualidade técnica e alunos mais maduros e independentes, esse modelo rapidamente se torna maçante, tedioso e desmotivador, pois implica a ausência de interação pessoal. Será que dá para continuarmos a trabalhar exclusivamente a partir dessa noção de hora-aula, exigindo alguma forma de “presença” de nossos alunos diante de um computador?
Em todos os modelos de EaD que eu conheço, o trabalho docente é pensado como tendo faces, papéis diferentes que são divididos e interpretados por atores diferentes, em tempos bem diferentes do que tivemos para fazer essa “virada on-line” a nós demandada pela emergência que estamos vivendo. O tempo de criação de um curso na EaD pode variar muito, como variam as estruturas institucionais, os processos e os atores envolvidos. Nesse contexto, a tutoria tem sido usada em praticamente todos esses modelos para resolver, digamos, o problema da interação. O tutor lida (ou deveria lidar) com grupos pequenos a partir de esquemas de ensino previamente determinados por outros professores. No momento, porém, somos, cada um, criadores de cursos, produtores de mídias e, crucialmente, tutores de grupos com números talvez muito maiores do que as pesquisas pertinentes indicam ser apropriado para interações on-line.
É claro que as habilidades necessárias para manipular essas mídias precisam ser desenvolvidas. É um processo de aprendizagem que não é simples, inclusive, para os jovens. Mesmo eles não nascem simplesmente sabendo como usá-las: o “nativo digital” é um mito criado no início do milênio em um contexto de marketing, desbancado logo depois por pesquisas empíricas. Apropriam-se, sim, de mídias, mas seus usos são limitados e, como todos nós, precisam aprender a utilizá-las.
Porém, penso que as questões mais importantes não são instrumentais, mas sim, conceituais. São nossas premissas, crenças e valores que determinam aquela “média” da qual falei antes: um aluno hipotético que compreenderá nossas explicações, manterá sua atenção e responderá às nossas demandas de engajamento. Os alunos também têm limites, possibilidades e demandas próprias, incluindo expectativas e pré-concepções sobre o papel deles e, em particular, sobre o nosso. Eles também têm noções sobre o que é aprender e o que é ensinar.
Para começar a fechar essa rápida introdução, então, gostaria de retomar a pergunta posta no início: “O que cabe no ensino remoto?”.
Acho que não há uma resposta única para essa pergunta, pois creio que precisamos pensar em detalhes de contextos específicos. Especificamente, precisamos pensar: quem é o público desse ensino? Na ES, pensamos exclusivamente nos estudantes, mas nas faixas etárias com as quais a EB lida, as questões de maturidade e independência são muito mais complicadas e críticas, e têm sido “resolvidas” indiretamente com a co-presença de pais ou responsáveis. Porém, uma simples substituição do presencial com horas passadas em frente ao computador para preencher as horas-aulas do cronograma da escola é problemático por diversas razões, incluindo os limites possíveis de atenção em diferentes faixas etárias (ou casos específicos), o papel do corpo e da interação pessoal no processo de aprendizagem, enfim, fatores outros que tendem a ficar obscurecidos quando nos preocupamos exclusivamente com “conteúdos” a serem “passados”. Já se fala sobre uma forma de “exaustão cognitiva” causada por horas de videoconferência. Além disso, exigir essa co-presença pode ser impraticável, pois as realidades das famílias em quarentena variam muito, inclusive pode não haver condições materiais para isso.
Pensarmos em “novas abordagens pedagógicas” pode ser útil. As ditas “metodologias ativas” têm despontado recentemente como grandes inovações a serem levadas às salas de aula: abordagens que dão protagonismo ao estudante, trabalhando a partir de formas que encorajem a motivação, a curiosidade, a independência do aprendiz. São várias possibilidades não tão novas em termos práticos, pois abarcam práticas comuns em diferentes áreas do conhecimento, que têm sido usadas com maior ou menor frequência dependendo, também, das possibilidades e demandas do contexto. Podemos, também, tentar pensar em formas de explorar o cotidiano do aluno como ponto de partida para tratar, talvez, temas e questões do momento atual. De qualquer forma, demanda-se aqui uma certa “mudança de cultura” para todos, inclusive nós mesmos, pois trata-se de bases conceituais bem diferentes daquelas com as quais temos trabalhado tradicionalmente.
A realidade é que todos nós estamos engajados em um processo de aprendizagem que pode ser mais ou menos desestruturante para cada um. Não estamos trabalhando pouco: o que tenho ouvido de colegas é que estamos trabalhando não apenas de formas fundamentalmente diferentes, mas, também, mais. Acho essencial que valorizemos muito a experiência que estamos tendo, por mais difícil que seja, e, crucialmente, que troquemos ideias com os colegas e, talvez, com nossos próprios alunos. Fazendo algumas críticas bem cortantes a políticas e programas de inclusão social a partir da inclusão digital, um dos pesquisadores mais conhecidos na área em que atuo propõe iniciativas de base como um caminho talvez melhor. Os dados que ele usa mostram que gasta-se muito em grandes programas, mas os resultados são discutíveis. O que ele sugere é um “pensar junto” coletivo dentro de grupos específicos que conhecem seus problemas, seus limites e suas possibilidades. Talvez haja algo aqui para pensarmos também.
Por fim, queria dizer para vocês que, em uma conversa como esta que tive há umas semanas, um colega mencionou que sente falta do “olho no olho” com os alunos, um sentimento compartilhado entre todos nós que somos professores, acredito. Penso, contudo, que essa carência não pode ser o único aspecto a definir a experiência que estamos vivendo. Em meio à incerteza do momento, sinto que precisamos reconhecer e celebrar o que não é incerto e o que não está ausente, que é o comprometimento com o que fazemos. Nesse espírito, quero fechar com as palavras que uma professora em formação usou para fechar uma escrita reflexiva: ela deseja ser uma “professora que consiga fazer a aprendizagem escapar da sala de aula”. Achei uma linda conclusão e, talvez, um excelente começo para pensarmos novos caminhos para o nosso ofício agora e após o final da quarentena.
Algumas observações gerais partindo de questões que apareceram nos comentários:
O pesquisador ao qual me referi é Neil Selwyn, e o texto que eu tinha em mente é um dos poucos trabalhos dele que foram traduzidos para o português: “O uso das TIC na educação e a promoção da inclusão social“. Vi alguns comentários perguntando sobre “grupos de conhecimento”, mas esse não é um conceito que eu conheça. Há as ideias de “comunidade de prática” e “comunidades de aprendizagem”, mas eu estava me referindo a “projetos ou iniciativas de base” (em inglês, grassroots projects).
O trabalho de Selwyn integra o conjunto de textos que tenho utilizado com meus alunos para contextualizar questões da área da Educação e Tecnologia (aliás, aproveito para deixar um esclarecimento: “autores” não são referencial teórico – um erro frequente que vejo em resumos de artigos e propostas de pesquisa…). Para um recorte da base teórica com a qual tenho trabalhado, veja aqui, e, para outras sugestões de leitura, veja a categoria Material para Estudo.
Sobre “nativos digitais”, há algumas indicações de leitura aqui.
Foi levantada uma questão sobre a possiblidade desse “ensino remoto” corrente estar contribuindo para a precarização da nossa profissão, junto com uma segunda pergunta relativa a “como podemos pensar as TIC” nesse contexto. Não discutimos essas perguntas diretamente, mas algo que sugeri, em meio à discussão, é que talvez precisemos parar de tentar pensar em problemas genéricos e “enormes”, sem especificidades, sem empiria, sem exemplos, parar de elocubrar de forma abstrata e sem relação direta com as “coisas” do mundo, como se a educação existisse em um “vácuo” . Não estou dizendo que não há precarização (e, pior, possibilidades, ou, minimamente, uma “vontade” de substituição do professor por máquinas), mas sim dizendo que é preciso falarmos de exemplos, de casos específicos que ilustrem esses problemas. A Profa. Raquel Goulart Barreto , da UERJ, tem conduzido essa discussão a partir de textos de políticas públicas – esse é um tipo importantíssimo de empiria , mas há outros. Selwyn, por exemplo, discute múltiplos exemplos em seu mais recente livro, Should robots replace teachers?. A própria forma que toma a pergunta do título indica que não se trata de fazer previsões, mas sim de analisar o que está acontecendo para que possamos ter voz, fazer nossas escolhas e agir. Fazer previsões é uma forma discutível de “teorizar” (e adorei quando a Lucia disse que “não temos bola de cristal”, resposta que eu mesma já dei em outras ocasiões). Como disse também a Lucia, quando um problema é grande demais, para de ser problema. Concordo totalmente.