A EaD como “Estresse a Distância”? Não, por favor, permaneçamos humanos…


Meme compartilhado por uma aluna em um grupo privado que criei no Facebook para a minha turma da graduação

Acabei de trocar mensagens com o António Moreira Teixeira , colega da Universidade Aberta de Portugal e um dos curadores de um ótimo site desenvolvido por uma comunidade de pessoas envolvidas em iniciativas e/ou instituições de Educação a Distância, o Ensinar a Distância. António havia me convidado para contribuir com essa curadoria, mas, até agora, eu estava metaforicamente afogada em múltiplas tarefas relativas a essa “virada on-line” a ser mundialmente concretizada. Ironicamente, estou sem acesso fixo à internet neste exato momento: parece um bom momento para dar uma parada e tentar escrever.

Tenho tido muitas conversas com colegas e amigos (meus amigos mais próximos são, também, professores, e sou muito grata por essa nossa pequena rede de sanidade), e dizer que estamos todos no mesmo barco simplesmente não é realista. Estamos diante de um cenário anteriormente inimaginável (e olhem que sou fã de filmes de catástrofes – só nunca havia pensado que viveria em um…). As incertezas são múltiplas, e as tarefas diárias multiplicaram-se. Temos muito mais a fazer a respeito de tudo que já tínhamos que cuidar antes da chegada do atual tsunami. Porém, nada disso se dá da mesma forma para todos nós. E nesse “todos nós” quero incluir, em particular, os estudantes: pensando neles é que estou agora a escrever.

Nesse espírito, acho importante destacar algo que os colegas da EaD já sabem há muito: que a ideia da “aula”, em particular, da “aula expositiva”, não é diretamente transferível para contextos de ensino e aprendizagem não-presenciais. Os suportes tecnológicos que temos (e incluo aqui o livro impresso), de modo geral, criam e operam em outros tempos e espaços, demandando sujeitos – professores e alunos – outros, reconfigurados a partir de possibilidades de interação e mediação diferentes daquelas que podemos concretizar com a presença do corpo. Mesmo na Open University, onde vivi, entre o final da década de 1990 e meados da década de 2000, uma “virada on-line” que diminuiu drasticamente o contato presencial entre tutores e alunos, inclusive nas tradicionais escolas de verão, adoradas pelos estudantes, ficou claro que a presença física em locais específicos (por exemplo, laboratórios ou salas de aula, no caso da formação de professores) não poderia ser abandonada. Há quem ache que é apenas uma questão de termos artefatos mais sofisticados à nossa disposição. Eu penso que, na verdade, há muito que simplesmente não sabemos sobre a aprendizagem, com ou sem a mediação de artefatos digitais.

Para ser mais pragmática, a EaD tem um aspecto básico: em qualquer modelo (aqui é importante ressaltar que há muitos modelos), a etapa de planejamento e produção (de planos e ações pedagógicas, recursos, etc.) é mais longa e detalhada do que seria o usual na educação presencial. Crucialmente, não é uma modalidade para qualquer estudante: a literatura da área é repleta de ideias como “autonomia”, “auto-direcionamento”, “organização”, “motivação”, enfim, uma variedade de ideias problemáticas e discutíveis, mas que formam a base das concepções do “estudante” ao qual a EaD tem sido dirigida há décadas, em muitos casos, com bastante sucesso.

No momento, porém, ouço as narrativas dos meus alunos e, dentro da minha própria casa, observo cuidadosamente minha filha, também estudante universitária, a passar horas diariamente diante da tela do computador, oscilando entre uma forma de desespero – “aula” após “aula” no Zoom, além de leituras longas, listas de exercícios, enfim, excesso de demandas com prazos inexequíveis na melhor das épocas – e total desânimo no fim de dias que têm ido até bem tarde. E aqui temos boa conexão à Internet, além de múltiplos espaços para nos movimentarmos ao longo do dia, silêncio e tranquilidade (além de uma despensa bem provida), enfim, condições que não são universais. Ou seja: não aludo apenas a questões de exclusão digital, mas a reflexos das grandes desigualdades sociais.

Além disso, para minha filha, como para a maioria, quer sejam estudantes mais ou menos privilegiados, a socialização tomou, por força das circunstâncias, outras formas, inclusive os sítios riquíssimos de aprendizagem entre pares também são outros e não mais a cantina, a biblioteca ou o boteco da esquina. Foram-se as horas gastas todos os dias no transporte público, horas que, mesmo “no aperto” de um carro de metrô, podiam ser “desfrutadas” em leituras leves no celular, conversas com amigos ou, simplesmente, devaneios. E se esse tempo agora é vivido em casa, não o é de forma ociosa, pois o estudante também foi convocado a participar mais em um dia a dia inteiramente diferente do que todos imaginávamos estar a viver a esta altura.

Essa “virada on-line” começou no Brasil um pouco depois da Europa e EUA, acompanhando a chegada (ou identificação?) de casos da Covid-19 no país, mas eu já estava a seguir notícias em jornais e blogs especializados internacionais. No próprio Facebook, uma das vozes mais sensatas que conheço na EdTech, Audrey Watters, resumiu minha própria reação inicial à adoção de plataformas e “ferramentas” digitais a partir de (sabe-se lá quais) “abordagens pedagógicas a distância” com crianças em idade escolar: que ninguém morrerá se não aprender a tabuada de 7 este ano (no caso da minha filha, conjugar vários verbos em latim).

Contudo, pensar em uma suspensão completa de atividades me parece ser inviável, não apenas em uma perspectiva institucional (pensando aqui, sobretudo, em instituições privadas), mas, também (e crucialmente), humanista. A distância facilmente transforma pessoas em números em planilhas de apoio a falsas dicotomias (salvar vidas ou a economia?), mas professores tendem a enxergar pessoas: alunos com diferentes necessidades, demandas, questões e, em alguns casos, problemas previamente existentes (por exemplo, ansiedade, pânico, depressão, enfim, a lista é longa). Continuar o contato com colegas e professores pode ser, para alguns (ou muitos? Quem sabe?), uma âncora em meio à incerteza, oferecendo referências para a construção emergencial de novos cotidianos.

Instituições diferentes estão a adotar formas diferentes para descrever o que estão a fazer: “Educação não-presencial”, “Educação on-line”, “Educação digital”, etc. Enfim, os rótulos são múltiplos, como são os debates e disputas territoriais acadêmicas, mas uma coisa me parece certa: tudo que podemos fazer, na atual conjuntura, são, de fato, ações emergenciais, tentativas e, para muitos, inteiramente novas e experimentais. Não sabemos o que virá, mas sabemos o que se apresenta agora: todos queremos a sobrevivência de nossas respectivas instituições, mas ninguém quer adoecer ou, sobretudo, adoecer os estudantes.

Não faço aqui uma crítica às ações de colegas ou das determinações postas por instituições, todos preocupados com a situação a partir de suas perspectivas próprias. Para mim, a profissão docente é uma das profissões do cuidado com o outro e, assim, sob pressão e em destaque no momento. Não sei o quão generalizada é a situação de overload dos estudantes, mas talvez seja sintomático o meme que a minha aluna circulou. A partir disso, então, deixo um convite para que pensemos cuidadosamente sobre o que estamos a fazer, ouvindo as vozes dos nossos estudantes e a eles explicando, nos limites do razoável, perspectivas que eles próprios não podem ter. Se a proverbial corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco, focalizar meramente em tecnologias e em “transposição” é uma armadilha que precisamos evitar para permanecermos humanos.

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