Lançamento de “Educação, tecnologia e ficção: da distopia à esperança”

Da esquerda para a direita, a/os autora/es: Kadja, Carla, Cristal, Camilla, Cíntia, Giselle, Luciana, Márcio e Thiago

Está agora disponível para baixar gratuitamente o eBook Educação, tecnologia e ficção: da distopia à esperança, coletânea de textos produzidos por participantes do Grupo de Pesquisas DEdTec, que coordeno no Departamento de Educação da PUC-Rio.

O livro foi lançado em um evento realizado na segunda-feira que passou, 24/04/2023, no Auditório Anchieta, campus da PUC-Rio. Contamos com uma rápida, mas potente, abertura do Decano do CTCH, o Prof. Júlio Diniz, seguida de uma apresentação da proposta de trabalho que resultou no livro (eu) e do livro em si (meus queridos Márcio Lemgruber e Thiago Cabrera, parceiros na organização da publicação). Estiveram presentes também os Profs. Alexandre Rosado, coordenador do Grupo de Pesquisa Educação, Mídia e Comunidades Surda, do INES/DESU, que escreveu a Apresentação do volume e criou as imagens do livro, e o Prof. Edgar Lyra, Diretor do Dept. de Filosofia da PUC-Rio, que escreveu o Prefácio, além de alunos, ex-alunos e colegas do Dept. de Educação e de outras unidades da PUC-Rio, bem como familiares, amigos e colegas de outras instituições. Minha filha, também presente, contou mais de 70 pessoas em algum momento – quem pôde ficar até o final, compartilhou conosco um café com deliciosos bolos.

Todas as presenças nos deixaram muito felizes, sobretudo as dos “mascotes” do grupo – vários bebês chegaram durante a pandemia, tornando o DEdTec um espaço sempre “pé-no-chão”, mesmo em meio às nossas viagens partindo da ficção científica. Com tudo isso, o evento não foi uma celebração apenas da concretização de um trabalho relativamente longo: marcou, também, a consolidação do DEdTec, que ainda está para completar 5 anos de existência.

Como eu disse no dia, o livro é apenas uma face tangível de um processo conduzido continuamente no grupo e que é, para mim, fundamental: um processo formativo para a criticidade e a autoria, sempre em ambiente acolhedor da diferença e da diversidade. As bases conceituais desse trabalho e o processo que culminou no livro estão apresentadas no primeiro capítulo. Os subsequentes abordam, cada um, uma obra de ficção científica (literatura ou cinema) – aqui está uma descrição sucinta do conjunto.

As orientandas-autoras criaram um vídeo com testemunhos curtos sobre sua participação na experiência, que exibimos após as falas. Ouça a seguir:

Fechamos o evento com uma vídeo-montagem mostrando cenas dos filmes discutidos no volume, especialmente preparada para nós por Luiza Furtado – farei um edit nesta postagem para incluí-lo, quando estiver disponível on-line.

Na sequência, tivemos um encontro do grupo na casa de Cíntia (à direta na foto), mestre egressa do DEdTec que fez uma bela pesquisa sobre podcasts, disponível aqui. Cíntia gentilmente ofereceu sua sala para brindarmos não somente pelo sucesso da proposta, mas, principalmente, pelas relações que temos construído dentro do grupo. Cíntia e Luciana (à esquerda na foto), também membro do grupo, foram os dínamos que tocaram a organização das celebrações, e merecem muitos agradecimentos (junto com o pessoal da secretaria, principalmente Dudu, que preparou o café e ajudou na arrumação inicial do auditório)!

E falando em agradecimentos, preciso mencionar também a Giselle (de Morais, mestranda), que tirou as fotos incluídas na postagem.

Para fechar, convido à leitura quem passar por aqui – o livro foi lançado pela Editora PUC-Rio e pode ser baixado diretamente neste link.

Livro *Metaphors of Ed Tech*

Capa do livro

Acaba de sair o novo livro de Martin Weller, Metaphors of Ed Tech, publicado pela Athabasca University Press e disponível para ler on-line aqui e baixar aqui. Vinha aguardando essa publicação desde o anúncio inicial (já não me lembro exatamente quando), pois parecer ser diretamente relevante a estudos que venho conduzindo desde 2017.

Baixei e comecei a ler (levarei um tempo para finalizar, devido a outras demandas, mas ontem consegui dar conta da introdução e da conclusão), e a introdução sugere que Weller seguiu a linha de uma proposta que comentei em uma postagem anterior: o uso criativo e lúdico de metáforas. Ele anuncia o seguinte (p. 12):

This is not primarily a book about metaphors, or metaphorical reasoning, but a book of metaphors.

Tenho alguns “livros de metáforas” (nenhum relativo a tecnologias educacionais) bastante divertidos – a leitura, então, parece promissora.

Dei uma olhada nas referências também, e identifiquei alguns textos que acho fundamentais nos estudos da metáfora na educação – como este (1998). A obra seminal de Lakoff e Johnson também está lá, na fundamentação teórica (em português, a excelente tradução do Mercado das Letras está indisponível aqui, mas encontrei aqui, ainda que a um preço meio assustador – como todos os livros no momento).

O autor parece ter privilegiado uma perspectiva instrumental da metáfora como ferramenta para o uso e implantação de tecnologias na educação. A palavra “ferramenta/s” (tool/s) aparece 71 vezes nas 199 páginas do livro (incluindo nessa contagem o material pré e pós-textual). A ver o que isso me dirá.

Dando uma diagonal rápida, vejo que Weller articula o livro a seu blog (um projeto que ele mantém há muitos anos) e a produções anteriores (em particular, seu livro The Digital Scholar). Também me parece haver um foco na Educação Superior, em particular, a distância (mais uma articulação do autor, aqui, a seu local de atuação), e um capítulo dedicado ao online pivot, que chamei de “virada on-line” no início da pandemia.

Tentarei ler logo (não deverá ser difícil, pois a escrita dele é sempre objetiva e fluente) e resenhar.

Ensino Frankenstein

Fonte: Pixabay

Têm pipocado por aí muitas propostas de formas que a educação pós-pandemia (de fato, educação na pandemia, pois ela ainda não acabou) poderá ou deverá tomar – e elas me preocupam.

Vejo muitos casos de mais do mesmo, mas com menos… menos carteiras para números menores de estudantes nos mesmos espaços, organizados da mesma forma de sempre (carteiras enfileiradas direcionadas para algum tipo de quadro). Tenho visto também casos de mais do mesmo, mas com mais: de novo, a mesma organização de objetos no espaço da sala, mas separados por divisórias transparentes. Veja algumas imagens aqui (há coisas interessantes também acontecendo: veja aqui algumas fotos de uma experiência na Espanha que viralizou a partir de uma foto que realmente não deu ideia do que teria sido tentado)

Além disso, o velho rótulo de “ensino híbrido” vem sendo resgatado, reinventado, em alguns casos, com nomes novos, em outros, com propostas de modelos bastante estranhas. Em décadas anteriores, mas já após o surgimento da Web, o conceito de ensino híbrido desafiava a polarização entre ensino presencial e ensino on-line no que diz respeito ao tempo de contato em professor e alunos: esquemas de ensino híbrido seriam constituídos de momentos presenciais (síncronos) e momentos on-line (assíncronos). O planejamento envolvido aqui é bastante trabalhoso, sem contar o suporte aos alunos. De qualquer forma, não é nada que instituições de EaD já não viessem fazendo, ainda que em contextos e concretizações diferentes (inclusive anteriormente à internet).

Pois a ideia da hora me parece ser um tal “ensino híbrido” (há outros nomes para a mesma ideia) no qual o professor é confrontado com câmera(s) e telas como “plugins” na velha sala de aula, para que possa “dar sua aula” a estudantes presentes tanto no espaço da sala, quanto via internet. Mas que tipos de interações são possíveis em arranjos assim? Como geri-las? Que efeitos essa combinação de tipos diferentes de presença poderia ter, inclusive, na saúde mental do professor? Em muitos casos, essas experiências serão ou estão sendo gravadas. Por que? Para quê? Como estariam sendo tratadas as questões de direitos de imagem (de professores e alunos) e direitos autorais (se estão sendo tratadas…)?

Essas são apenas algumas questões que me ocorrem em uma aproximação inicial ao enorme desafio posto por esse arranjo, um desafio pedagógico e, em sua base, comunicacional. O arranjo me parece uma enorme gambiarra (termo que guardo com carinho dos meus tempos de estudante de engenharia, pois serve para tanta coisa relacionada à Educação e Tecnologia), algo criado a partir de proverbiais “puxadinhos” que partem de uma ideia que, em si, já precisa ser repensada, ou seja, um cenário que apenas o solucionismo tecnológico poderia enxergar como saída para qualquer coisa.

Mesmo com o avanço da vacinação, estamos diante de incógnitas fundamentais que deixam as instituições educacionais com problemas logísticos enormes, mas que também revelam problema que já existiam. Dentre eles, a questão das salas de aulas lotadas e o foco na hora-aula como parâmetro fundamental na construção do currículo. Acho que esses são os pontos para começar a discussão. Sem isso, temo que estaremos aceitando (que seja por omissão) a premissa de inevitabilidade da inovação por meio de tecnologias digitais e, assim, contribuindo para a criação de aberrações sob um modelo de Ensino Frankenstein.

Mais um post sobre experiências na educação durante a pandemia…

Fonte: Pixabay

Publiquei anteriormente alguns posts sobre questões gerais pertinentes à educação durante a pandemia (reunidos aqui), e cheguei a mencionar que escreveria, futuramente, detalhes sobre como estava trabalhando na graduação. Pois tentarei fazer isso agora, partindo de rascunhos e anotações que fui fazendo ao longo de 2020.

Tanto no primeiro, quanto no segundo semestre de 2020, fui alocada a uma disciplina sobre tecnologias e educação. É uma matéria obrigatória do curso de Pedagogia e eletiva das outras Licenciaturas e do domínio adicional Tecnologias e Mídias Digitais da universidade, e, por isso, relativamente popular. Os grupos, porém, eram bastante diferentes: o de 2020.1 era composto, predominantemente, por alunos de 1o e 2o período da Pedagogia. Em 2020.2, a maioria era de alunos das outras Licenciaturas (Biologia, Letras, etc.), muitos já nos dois últimos períodos de seus respectivos cursos, ou seja, era uma turma de estudantes mais maduros, digamos. De qualquer forma, as turmas que tenho tido na disciplina tendem a ser fortemente heterogêneas de diversas formas, e preciso sempre considerar, também, como parte dos propósitos de qualquer ação, a necessidade de acomodar uma ampla gama de habilidades, possibilidades e limites.

No início de março, tive, com a turma daquele semestre, alguns encontros presenciais ao longo das duas semanas que se passaram até ser decretado o fechamento do campus da instituição, e já estava com quase todos os nomes e rostos em mente. Com a turma do semestre seguinte, acabei por conhecê-los apenas como nomes escritos sobre um retângulo preto, ou fotos de rostos sorridentes, pois muitos preferiam não abrir suas câmeras, ainda que participassem, ocasionalmente, por áudio. Ou seja, foram experiências totalmente diferentes, não apenas porque foram grupos de pessoas diferentes, com expectativas também bastante diferentes, mas, crucialmente, porque não foi possível o usual encontro de “acolhimento” presencial que as “boas práticas” de EaD tendem a defender.

A lógica que adotei para pensar inicialmente a adaptação da disciplina para a situação não-presencial baseou-se em dois eixos fundantes: (1) inclusão; (2) articulação “teoria-prática”. Por um lado, tomando como base uma espécie de máxima que orienta a determinação de requisitos técnicos para cursos em EaD (“a corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco”), pensei em adotar várias mídias alternativas para apoiar contatos pessoais, com preferência por mídias assíncronas, que são menos custosas em termos de consumo de dados (alguns pacotes de dados para celulares oferecem acesso ilimitado a alguns serviços). Por outro lado, objetivando promover uma forma de articulação “teoria-prática” baseada na apropriação de ideias acadêmicas em exercícios de leitura de mundo, propus uma série de atividades que combinaram trabalho conceitual (leituras e discussões de textos acadêmicos) com buscas e discussão de matérias on-line sobre assuntos do momento vivido (em duplas ou pares), complementadas com reflexões individuais.

Comecemos, porém, pelas questões mais instrumentais.

Para a turma do primeiro semestre, na correria que se sucedeu à implantação da quarentena no estado do Rio de Janeiro, acabei utilizando dois grupos no Facebook e um grupo no WhatsApp, além do espaço no Google Drive que já havia organizado na preparação para o semestre. A universidade dispõe de um sistema de administração acadêmica que permite envio de e-mails em bloco para turmas inteiras, que é bem útil para os professores (não temos que criar listas separadamente), mas nem sempre produtivo (pois sistemas de e-mail diferentes às vezes direcionam as mensagens recebidas por esse sistema para a caixa de spam). Utilizo esse sistema com parcimônia, mas, no início do semestre, não houve outro jeito.

Acho que levei duas semanas até conseguir que todos compreendessem como seria a nova dinâmica e acessassem todos os espaços, seguindo as seguintes etapas:

  1. Primeiro contato com os alunos por e-mail em bloco (primeira semana da quarentena) para verificar a situação de cada um no tocante a equipamento, acesso à internet e espaço para trabalho;
  2. Com base nas informações obtidas nesse levantamento, montei um grupo de WhatsApp reunindo toda a turma (tratava-se da única mídia da qual todos já eram usuários), para possibilitar um acolhimento inicial e a (re)organização das atividades; a primeira atividade foi realizada com apoio desse aplicativo;
  3. Na sequência, criei os dois grupos (secretos) no Facebook (a única aluna que não era usuária dessa plataforma gentilmente se prontificou a criar um perfil para acompanhar a turma): um grupo para trocas informais (“Café com Bolo”, aberto para postagens por todos), outro para o trabalho na disciplina (no qual apenas eu poderia postar, mas todos poderiam comentar), e todos os trabalhos e discussões foram conduzidos nessa plataforma (com apoio de e-mail, WhatsApp e ligações telefônicas, em alguns casos);
  4. Videoconferências por Zoom foram realizadas em momentos específicos do semestre (sessões de uma hora, com a turma dividida em grupos, pois eram muitos), com fins, basicamente, de cultivar relações e dar uma espécie de apoio “pastoral”. A utilização de e-mail foi minimizada (a pedido dos próprios alunos), e o WhatsApp permaneceu em uso (uso esporádico do grupo criado inicialmente, mas uso continuado para comunicação um-a-um). Foi mantida a pasta no Google Drive que havia montado antes do início do ano letivo, contendo o programa da disciplina e um repositório de todas as leituras (básicas e complementares) em arquivos PDF.

Para o segundo semestre, recebemos uma orientação institucional no sentido que procurássemos concentrar nossos usos de espaços on-line no AVA interno (Moodle), gerido e mantido pela unidade que coordena a oferta de EaD da universidade. A plataforma realmente oferece uma grande vantagem com relação à gestão da avaliação (em 2020.1, recebi trabalhos via múltiplos canais, e a trabalheira para organizá-los foi insana, pois havia entregas quinzenais individuais de uma turma de 36…). Além disso, o agendamento e acesso ao Zoom foram integrados no ambiente, o que é bem útil também. Então, para a turma do segundo semestre, o espaço ficou assim:

Preferi a configuração de blocos, que deixa a tela mais limpa e funciona bem no celular também, e usei ícones e indicações claras de temas e datas para criar um mapa/guia do curso. Ao clicar em um bloco, abre-se uma janela com detalhes; por exemplo:

Nada disso é novo (são pequenos detalhes de “design instrucional“), e o uso dos arquivos pdf é algo que muitos da área do e-learning dirão ser uma “má prática”. Aqui entram as especificidades do contexto e a necessidade de flexibilidade, tanto no acesso a orientações e textos, para que pudessem ser lidos sem que o aluno estivesse necessariamente on-line, quanto no tocante a prazos. O acesso à internet no Brasil é mesmo bem frágil, e tive que reagendar alguns encontros (com a turma de pós e com o grupo de orientandos) por total falta de acesso (até o 4G pelo celular estava restrito nessas ocasiões). Outra coisa é que os layouts “quebradinhos” de treinamentos on-line não são, na minha opinião, apropriados para toda e qualquer experiência educacional on-line. De qualquer forma, elementos on-line e o off-line, síncronos e assíncronos sempre precisam ser pensados de forma integrada, e precisamos estar sempre prontos para improvisar alternativas.

OK, esses são os ossos do ofício do trabalho on-line com infraestrutura flaky – mas e as questões pedagógicas?

Bem, aqui me considero bastante privilegiada com a disciplina: se mídias e tecnologias, antes do início da pandemia, estavam em pautas de discussão específicas e eram ainda tratadas por muita gente como um “adendo” à formação de professores, as coisas mudaram radicalmente com o fechamento das instituições de ensino (em todos os níveis). Nesse contexto, os assuntos dos quais usualmente trato na disciplina tornaram-se fundamentais de uma forma não imaginada antes.

Pensei, então, que o ideal seria adaptar, de forma bastante explícita, o material da disciplina ao momento que estávamos vivendo, aproveitando as vivências de aprendizagem remota dos próprios alunos, bem como elementos do contexto mais amplo no qual estávamos inseridos, como fonte de material a ser integrado no trabalho da disciplina.

A partir de uma estrutura de atividades com produtos a serem entregues semanal ou quinzenalmente para fins de avaliação continuada, consegui manter o direcionamento que havia determinado ao montar o programa original da disciplina, que combinava elementos de “aprendizagem entre pares”, “sala de aula invertida” e “aprendizagem por projeto”. Dessa forma, conduzi os alunos em reflexões sobre a experiência de aprender a distância como base para encorajá-los a repensarem suas concepções sobre aprender, ensinar, a aula, a sala de aula e os objetos que fazem parte do cenário da educação (digitais ou não). E como faço sempre, encorajei-os a manterem um Diário com anotações, questões, recortes de leituras (e de materiais midiáticos sobre os assuntos tratados), para a composição de um portfólio a partir do qual seria feita a avaliação.

Para ilustrar, compartilho aqui uma das atividades conduzidas, relacionada ao tema “letramento midiático”. O objetivo da atividade era proporcionar aos alunos uma oportunidade de explorarem os problemas envolvidos na divulgação de “notícias enganadoras” (que incluem as famigeradas fake news), bem como, em particular, refletirem sobre o processo de verificação de informações. As orientações por escrito foram, subsequentemente, exploradas em discussão de forma a explicitar o pensamento pedagógico a sustentar a atividade. Dessa forma, os alunos também foram convidados a refletir sobre questões pedagógicas, ou seja, convidados a pensarem como professores (em formação, que é como sempre os trato). Assim, a discussão pode avançar não apenas em relação ao “conteúdo” (o tema), mas também à “forma” (o modo como a atividade foi pensada), o que me parece essencial em um contexto de trabalho com futuros docentes (e aqui incluo o pessoal da Comunicação que expressa o desejo de atuar na comunicação pública da ciência).

Nesse sentido, a avaliação na disciplina sempre contém, minimamente, um componente reflexivo, e, no segundo semestre, cheguei a um formato que achei bastante produtivo (e que manterei para o semestre atual, com alguns ajustes para melhorar a apresentação). As orientações estão aqui. A proposta envolve um elemento de role play que demanda a mobilização de conhecimentos em um contexto profissional imaginário, destacando a noção de que é o pensamento pedagógico que precisa orientar a ação docente, não a disponibilidade de mídias. Acho isso bem mais interessante do que uma prova ou mera atividade de produção (instrumental) de mídias (como vinha fazendo no laboratório que temos disponível para essa disciplina no presencial).

Uma coisa que não consegui, no final do semestre, foi fazer com a turma a avaliação da disciplina. Faço isso todo semestre usando como base este formulário, mas, confesso: cheguei ao final dos semestres de 2020 quase que inteiramente “sem gás”. Esse tipo de avaliação é uma forma importante de ação docente, pois, além de me dar subsídios para refletir sobre o que faço, também constitui uma oportunidade para os professores em formação sob minha responsabilidade pensarem sobre avaliação, que é um assunto em geral negligenciado. Surpreendem-se, quase sempre, com a proposta e com meus comentários sobre avaliação ser algo integral à aprendizagem, “instantâneos” que dizem alguma coisa sobre um processo, que é algo que se desenrola no tempo, mas não dizem tudo.

Há muito que eu poderia falar sobre essas experiências remotas, mas vou destacar alguns pontos que considero essenciais:

  1. Como muita gente vem dizendo, não faz sentido simplesmente substituir horas-aula por horas no Zoom. Isso simplesmente deixa todo mundo exaurido. É preciso pensar em formas de manter o contato pessoal, claro, mas o contexto que estamos vivendo não é o que tínhamos antes, ou seja, as pessoas não estão em casa por vontade própria. E, em casa, as demandas também mudaram (aumentaram, para muita gente), inclusive, com o relaxamento do isolamento social, deu-se o retorno gradativo de muitos a seus respectivos locais de trabalho. Enfim, as circunstâncias dos alunos (e nossas!) são múltiplas. Aliás, câmeras fechadas refletem tanto as formas de se lidar com essa multiplicidade, quanto a questão perene da “presença sem presença”, mencionada no próximo item (no final de encontros no Zoom, sempre há remanescentes que parecem ter estado presentes dessa forma…).
  2. Também como reza a cartilha da EaD, a aprendizagem não-presencial demanda muito mais autonomia e organização do aprendiz. Não acho, entretanto, que essa questão seja relevante apenas à aprendizagem remota: a distância apenas torna crítico um problema já existente. No campus, a agenda semanal dos alunos tende a girar em torno da presença em sala de aula. As próprias expectativas dos alunos parecem girar em torno da ideia de que só se aprende em sala de aula – mesmo admitindo que, com frequência, o estar em sala é apenas “de corpo presente”, em uma “presença sem presença”, ou seja, o aluno está suficientemente ali para evitar uma falta na pauta, mas, durante aquele tempo, passa a habitar algum “lugar feliz” em sua mente, alheio ao que se passa ao seu redor. Fora do campus, sem sessões de Zoom a substituir a hora-aula, fica mais óbvia a necessidade de organização. Em particular, no contexto de formação de professores, acho essencial mostrar não apenas que a sala não é o único local de aprendizagem, mas, crucialmente, que eles precisam se apropriar do processo de forma mais ampla. Precisamos lhes dar oportunidades para ensaiarem essa apropriação.
  3. Por que não usei o Moodle no primeiro semestre? Sinceramente, porque não quis. Fui usuária do Moodle no passado, até cheguei a fazer uma instalação em um computador na época, e não gostava do excesso de parâmetros e controles. As coisas mudaram um pouco e realmente faz sentido, para alunos com todas as disciplinas em modo remoto, que haja um espaço único onde possam acessar tudo que precisam. Há, também, a questão da avaliação, que já mencionei acima. Mas ainda não entendo como podem defender o Moodle como “construtivista”, e tenho mil e uma objeções também relativas a questões de direitos autorais e direitos de imagem (tanto que, em geral, não gravo encontros no Zoom). Enfim, é uma solução de compromisso, no meu entender, um assunto para outra postagem.
  4. Em momento algum quis dizer que o que estou fazendo é modelo para outras pessoas! Pelo contrário: no final do primeiro semestre, especificamente, recebi algum feedback bem negativo de um aluno (poucos participam da avaliação institucional dos professores). Creio que alguns (ou muitos, não saberia estimar) esperavam aquilo que acham que é a EaD: aulas gravadas. Eu, particularmente, acho aulas gravadas quase sempre bastante tediosas (recentemente comecei a acelerar a velocidade de playback de certos vídeos – é uma experiência horrenda, e creio que pagaremos um preço por isso, com tantos jovens adotando essa estratégia…). Na Open University, aliás, aulas gravadas foram abandonadas muito cedo na história da instituição, que foi favorecendo gêneros midiáticos mais criativos e interessantes, como docudramas, dramas históricos, animações etc. Enfim, isso seria mais um assunto para outras postagens.

Por fim, a questão mais importante: para que mais um postagem sobre experiências na educação durante a pandemia? Parece haver muitos gurus e “especialistas” de prontidão (principalmente para vender benditos “treinamentos”), e as postagens se multiplicam com dicas, estratégias, defesas de rótulos específicos, enfim, já nos aproximamos de uma forma de infoxicação dessas coisas. Nomes novos para coisas velhas, nomes velhos para coisas novas, enfim, a busca por estabelecer territórios não cessa nunca… Nesse contexto, acho válido lembrarmos de que, talvez, o que precisemos, é de experimentação, criatividade e, crucialmente, mais reflexão. Sim, é preciso saber “onde clicar”, mas isso se pode descobrir simplesmente clicando, lembrando que, neste mundo digital, é possível desfazer quase tudo. O que não dá para desfazer com facilidade são as expectativas e pré-concepções, nossas e de nossos alunos. Para tanto, é preciso reflexão, e, nisso, espero ter adicionado meus dois centavos do dia.

Entre a ficção e a realidade: uma experiência

No 7o Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídias, que aconteceu on-line na semana passada, apresentei, junto com alguns dos integrantes do DEdTec, um relato sobre o trabalho que conduzimos em 2020.2: Uma experiência de formação com a ficção durante a pandemia: da distopia à esperança. Eis a proposta original:

Apesar da euforia em torno das tecnologias de internet como meios para manter as instituições educacionais em funcionamento durante a pandemia de covid-19, a realidade representada em relatos de jornais, blogs e artigos científicos é bastante diversa. Mundo afora, vidas estão sendo profundamente afetadas (ou, infelizmente, perdidas), e, no âmbito da educação em um país com desigualdades tão marcantes quanto o nosso, professores e estudantes têm enfrentado desafios, em alguns casos, intransponíveis. Mais do que nunca, talvez, a profissão docente se revela como uma das profissões do cuidado: somos formadores de seres humanos. Em particular, na crise que estamos vivendo, nossas propostas pedagógicas precisam superar uma visão “conteudista” do currículo e considerar as possibilidades e limites do aqui e agora, integrando-as, na medida do possível, em nossas ações junto aos nossos alunos.

Nesse sentido, esta proposta baseia-se em uma reflexão sobre uma experiência conduzida, no segundo semestre de 2020, com um grupo de estudantes em processo de formação para a pesquisa em Educação. Na esteira de experimentações anteriores (por ex., Ferreira et al. 2020; Rosado et al, 2015), e inspirada em literatura que explora o potencial da ficção como um recurso formativo (por ex., Aquino & Ribeiro, 2011; Lemos, 2016), a experiência em questão teve dois objetivos principais: (1) apoiar o desenvolvimento de criticidade acerca da relação entre a educação e a tecnologia, utilizando cenários ficcionais que exploram a relação entre humano e máquina; (2) proporcionar um espaço de discussão que possibilitasse a articulação entre o acadêmico e o não acadêmico, sobretudo o pessoal e o vivido. Nesse sentido, foram selecionadas algumas obras de ficção distópica como base do trabalho do grupo ao longo do semestre, complementadas com textos acadêmicos (incluindo Postman, 2005 [1985], Coeckelbergh, no prelo; Haraway, 2009 [1991], dentre outros).  

As seguintes obras foram examinadas em encontros síncronos semanais: (a) Autofab, episódio do seriado Electric Dreams que revisita e atualiza, para o nosso momento de expansão da Inteligência Artificial e criação de robôs antropomórficos, o conto de Phillip K. Dick escrito na década de 1950, quando os temores da humanidade tinham por objeto a tecnologia nuclear; (b) Frankenstein, de Mary Shelley, um clássico da literatura gótica vitoriana considerado o precursor da ficção científica; (c) Metropolis, de Fritz Lang, um clássico do expressionismo alemão que, além de constituir um marco na história do cinema, permanece intensamente relevante em sua exploração da relação entre tecnologia e sociedade; e (d) Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, uma obra publicada em 1932 de notável presciência, que mantém viva sua atualidade, em particular, no que diz respeito às decorrências do avanço tecnológico para a reprodução biológica e sociocultural, conforme destacou Postman (2005 [1985]).

A apresentação aqui proposta irá abordar: (a) os fundamentos teórico-conceituais e a metodologia planejada para a experiência; (b) leituras do grupo a partir das obras (e articulações entre elas), focalizando em formas nas quais essas obras podem nos ajudar a compreender e questionar o contexto atual mais amplo no qual a educação se insere; (c) questões imbricadas nos processos comunicacionais remotos síncronos em um contexto considerado, em si mesmo, distópico. Nele, a experiência mostrou-se não apenas um exercício intelectual, mas sim uma exploração criativa e fortemente solidária, que acolheu e promoveu a reflexão individual e a construção compartilhada de significados em/sobre um contexto desafiador e circunstâncias, com frequência, delicadas. Assim, em uma perspectiva mais ampla, a experiência constitui-se em um exemplo de como a reflexão a partir de narrativas distópicas pode se tornar um alicerce para a humanização, a resistência e, quiçá, a esperança.

Palavras-chave: educação superior na pandemia; distopia; ficção científica; formação de pesquisadores

Referências

AQUINO, J.G.; RIBEIRO, C. (Org.). A Educação por vir: experiências com o cinema. São Paulo: Cortez, 2011.

AUTOFAC (Temporada 1, ep. 8). Electric Dreams [Seriado]. Direção: Peter Horton. Podução: Channel 4 Television Corporation e Sony Pictures Television, 2017. 1 vídeo (51 min).

COECKELBERGH, M. Antropologias do monstro e tecnologia: máquinas, ciborgues e outras ferramentas tecno-antropológicas. In: BANNELL, R.I.; MIZRAHI, M.; FERREIRA, G.M.S. (Org.) Deseducando a educação: mentes, materialidades e metáforas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, no prelo.

DICK, P.K. Autofab. In: DICK, P.K. Electric Dreams. Trad. Daniel Luhmann. São Paulo: Aleph, 2017 [1955].

FERREIRA, G.M.S. et al. Estratégias para resistir às resistências: experiências de pesquisa e docência em Educação e Tecnologia. e-Curriculum, v. 18, n. 2, p. 994-1016, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p994-1016 >. Acesso em: 15 jan. 2021.

HARAWAY, D. O manifesto ciborgue. In: Tadeu, T. (Org.) Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Trans. Tomaz Tadeu. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 [1991].

HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Trad. Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1979 [1921].

LEMOS, D.C.A. (Org.) Distopias e Educação. Entre ficção e ciência. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2016.

METROPOLIS. Direção: Fritz Lang.  Produção: Erich Pommer. Alemanha / Finlândia: Universum Film / Yleisradio, 1927/2010. 1 DVD (153 min.).

POSTMAN, N. Amusing ourselves to death. Public discourse in the age of show business. 20th anniversary edition. Nova York; Londres: Penguin, 2005 [1985].

ROSADO, L.A.S. et al. De Metropolis a Matrix: arte e filosofia na formação de pesquisadores em educação. Leitura: Teoria e Prática, v. 33, n. 54, p. 97-110, 2015. Disponível em: < https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/371/272 >. Acesso em 15 jan. 2021.

SHELLEY, M. Frankenstein, ou o Prometeu moderno. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Hedra, 2013 [1818].

Os slides da apresentação podem ser baixados neste link.

Infelizmente, meu parceiro nessa aventura de trabalho com filmes e livros, o Prof. Márcio Lemgruber, não conseguiu estabilizar sua conexão à Internet na hora da sessão e, assim, não conseguiu participar, mas eu e Kadja Vieira, mestranda no DEdTec, fizemos a apresentação. Kadja criou o layout para os slides, deixando apenas alguns detalhes para eu finalizar, pois já tínhamos aproveitado a primeira sessão de discussão do grupo neste semestre para organizar as ideias, até porque há muita gente ingressando no grupo agora e achei importante darmos uma ideia ao pessoal novo sobre os caminhos que trilhamos no ano passado.

As perguntas que recebemos foram bastante interessantes e permitiram que elaborássemos um pouco mais as ideias, tanto sobre a experiência em si, quanto sobre as pesquisas em andamento. Gostaria, porém, de dar destaque às respostas dadas por minhas orientandas, que mostraram como a experiência tem sido, de fato, produtiva: como orientadora (professora, de forma mais geral), não espero que meus alunos saiam pelo mundo repetindo o que digo (aqui lembro sempre do amigo Alexandre Rosado, com quem compartilho um horror a sectarismos acadêmicos), mas que se apropriem das ideias com as quais têm contato por meu intermédio e, principalmente, que as questionem sempre. As palavras das três – Kadja, Juliana e Cristal – sugeriram que estamos mesmo a caminhar dessa forma, o que me deixou bastante satisfeita.

Quero também ressaltar o papel fundamental do Prof. Márcio no processo que tem permitido que nosso espaço de discussão vá se constituindo como um espaço livre, protegido, acolhedor e fortemente dialógico: temos uma crença compartilhada de que é mais importante dizer algo sobre o que alguém disse do que simplesmente repetir o que já foi dito, sempre, obviamente, de forma consistente com o momento de formação de cada um. Por outro lado, não abandonamos o papel que nos cabe, como docentes, no sentido de dar apoio e direcionamentos possíveis a cada um que embarque na construção desse caminho que pensamos ser a criticidade.

Tem sido um privilégio estar com ele e com todos que escolhem permanecer no grupo, e é desse estar junto, mesmo que on-line, que a esperança vai se nutrindo – como disse o escritor Ítalo Calvino no fechamento de seu maravilhoso As Cidades Invisíveis,

7o Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídias

Aconteceu, na semana passada, o 7o Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídias / 3a Escola de Primavera em Educação e Mídias Guaracira Gouvêa. O evento foi reagendado da primavera de 2020 para o início do outono de 2021, por causa da pandemia.

Muita gente esteve envolvida na organização do CPEM, que se deu inteiramente on-line pelo canal do evento no YouTube (as sessões principais) e Zoom (as rodas de conversa). A programação completa está nesta página no site do evento.

Infelizmente, não consegui participar de todas as sessões que havia planejado, devido a conflitos em minha agenda, mas o sentimento que tive, a partir das sessões nas quais consegui participar, foi de uma certa tristeza, por um lado, e muita garra, por outro. Esse foi o primeiro CPEM conduzido sem uma de suas idealizadoras e organizadoras mais presentes, a Profa. Guaracira Gouvêa, não mais entre nós, e ela foi carinhosamente lembrada e homenageada.

E, como não poderia deixar de ser, na atual conjuntura de crise generalizada que estamos a viver, o evento constitui-se como uma forma de resistência, como tanto do que está sendo feito na Educação Superior neste momento. A sessão de fechamento foi particularmente emocionante nesse sentido: fica aqui uma lembrança, gentilmente cedida pela querida Jaciara Carvalho!

Contribuí modestamente para a organização como membro do Comitê Científico, e apresentei, com integrantes do DEdTec, um relato de nossa experiência em 2020.2, sobre o qual vou comentar na postagem seguinte: volte em breve para vê-la!

“O que cabe no ensino remoto?”

Cartaz de divulgação da conversa

“O que cabe no ensino remoto?” Essa foi a pergunta disparadora de um debate promovido pela Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBenBio), que aconteceu anteontem via StreamYard / YouTube. Foi uma excelente conversa mediada por Cristiana Valença, Professora do CEFET/RJ e Conselheira da SBEnBio, que começou com uma curta fala minha e, na sequência, uma apresentação da Profa. Lucia Pralon da Escola de Educação da Unirio. Por volta de 60-70 pessoas estavam assistindo e comentando no chat.

Assista abaixo à gravação dessa live:

Como fiz para uma roda de conversa anterior, montei um roteiro para a minha fala e alguns slides com imagens para acompanhá-la, que copio abaixo. No final da postagem, há alguns comentários adicionais que tentativamente respondem algumas perguntas que não conseguimos discutir na hora.

Print de tela mostrando a equipe envolvida no evento

Boa tarde a todos, e muito obrigada por estarem aqui hoje. Quero agradecer também ao pessoal da Associação Brasileira de Ensino de Biologia pelo convite para esta conversa, em especial, aos Profs. Pedro Teixeira, Rodrigo Borba e Cristiana Valença.

Bem, nossa questão disparadora é a seguinte: “O que cabe no ensino remoto?”

Como a Cristiana disse, eu trabalhei muitos anos em uma instituição a distância fora do país, mas eu quero dizer, logo de saída, que não tenho “pérolas de sabedoria” para simplesmente “passar” para vocês.

Já vou explicar, então não se desanimem ainda!

A Educação a Distância que eu conheço bem é uma educação imaginada para um tipo específico de estudante: um adulto independente, relativamente amadurecido como aprendiz e intrinsicamente motivado para aprender. Há muita discussão e muita coisa escrita sobre essa modalidade, mas, mesmo assim, ainda há muito que não compreendemos. A EaD tem mais de um século de história, e a educação em nível básico (ou compulsório) figura nessa história em termos de casos extraordinários, em geral, como complemento, em alguns casos, suplemento e, raramente, como modalidade principal na formação de crianças e jovens.

Então, por que não vou lhes oferecer “pérolas de sabedoria”? Porque creio que não existe isso no tocante à educação remota de crianças e adolescentes. Na verdade, penso que vocês, professores da EB, em particular, cada um em circunstâncias próprias, em escolas diferentes, em locais diferentes, são uma espécie de “pioneiros” em um cenário muito complexo. A situação que estamos vivendo na ES é complicada, mas acho que o desafio que vocês estão enfrentando é muitíssimo mais difícil.

Pois, o que tentarei fazer é mostrar alguns pontos que creio serem fundamentais à educação não-presencial, de forma geral, bem como algumas questões que, acredito, podem ser úteis à conversa que teremos daqui a pouco.

Gostaria de destacar que há múltiplas formas de nos referirmos a essa educação na qual professor e alunos não estão no mesmo lugar, ao mesmo tempo: “Educação a Distância”, “Educação Online”, “Educação Não-Presencial”, “Educação/Ensino Remoto/a”, “Ensino Digital” e muitos outros. Enfim, os rótulos são variados, mas penso neles como diferentes modelos (e territórios acadêmicos) dentro desse universo mais amplo de uma educação sem a copresença física de professor e alunos. Não é fácil escolhermos uma denominação para o que estamos fazendo, também porque há implicações comunicacionais, relevantes porque a EaD, em geral, não tem a melhor das reputações no país, e nomes diferentes terão maior ou menor apelo, em particular, para quem financia a experiência (por exemplo, pais e responsáveis).

A questão mais básica que precisamos considerar relaciona-se às enormes desigualdades que caracterizam o nosso país. Se estamos vivendo uma tempestade durante esta quarentena, é ingênuo achar que estamos todos no mesmo barco. Não estamos. A EaD tem uma história associada a políticas e programas de ampliação do acesso à educação, que têm sido associadas a programas de criação de infraestrutura tecnológica para garantir o acesso dos estudantes. Historicamente, tivemos os correios, o rádio, a televisão, e só bem recentemente a Internet. Nosso momento é da Internet como tecnologia fundamental, então questões de acesso são básicas. Aqui, acho importante ressaltar que são questões que fogem à nossa alçada como professores, mas leio e ouço histórias de professores fazendo coisas incríveis, com grande custo pessoal, para ajudar seus alunos, e isso me revela, com clareza, a face de “cuidadores” às vezes esquecida da nossa profissão. É essa face que mostra o papel da empatia em nosso ofício, do pensar no outro que é diferente e está em condições diferentes das nossas.

As questões que nos cabem mais diretamente, então, são outras, que tendem a escapar às perspectivas macro dessas grandes (e, é claro, importantíssimas) iniciativas. As imagens que estou projetando mostram as areias de uma praia em Maui usando lentes diferentes: de um lado, uma macrofotografia; de outro, uma microfotografia, ambas do mesmo objeto. São imagens que uso para discutir essas mesmas questões com meus alunos, que sempre ficam maravilhados ao ver o que tendem a chamar de “diversidade” refletido em fotografias. Sinto que eles apreciam quando digo que os vejo, cada um, como um cristal colorido, único, diferente dos demais.

No presencial, lidamos com turmas que são heterogêneas, e os alunos que mais nos demandam geralmente são aqueles cujas habilidades se afastam mais de uma “média”, digamos: os que têm mais “dificuldades” e os que têm mais “facilidade” em responder às nossas demandas. Esses nos pedem mais tempo, mais criatividade, enfim, nos fazem explorar e, talvez até ampliar, nossos respectivos repertórios. Em sala, para colocar nossos planos de aula em prática precisamos sempre de uma boa dose de adaptação e improvisação, em tentativas de responder aos desafios que aparecem ali, a cada momento, com aquele grupo que temos diante de nós.

Esses repertórios estão profundamente imbricados em nossa linguagem cotidiana. Por exemplo, falamos de nossos “currículos” como constituídos de “conteúdos” que “expomos”, “passamos” ou “transmitimos” aos alunos, que aprendem “absorbendo” ou “digerindo” o que lhes oferecemos. Trata-se, aqui, de metáforas, compreendidas de forma bem mais ampla do que meras figuras de linguagem ornamentais. São, de fato, ideias muito poderosas que constituem as bases sobre as quais construímos nossas ações como professores.

Como professores de Biologia, vocês criam seus planos de aula a partir de ementas integradas nas matrizes curriculares de suas respectivas escolas. A atuação de cada um segue diretrizes e concepções consistentes com as demandas da sua área e da escola (ou escola) onde atua. Mas, como professores, nossa atuação revela mais: nossas ações materializam nossas formas de pensar sobre o que é ensinar, e revelam o que pensamos ser aprender. Em outras palavras, nossas concepções de ensinar e de aprender, com frequência tácitas, estão sempre em jogo e “à mostra”, digamos, em nossas ações.

Então, quer seja a partir de metáforas ou de outros mecanismos, nossas concepções se concretizam na aula expositiva mais tradicional, no âmbito da hora-aula em sala, nas baterias de exercícios, nos tipos de atividades ou problemas que propomos aos alunos, enfim, em tudo que fazemos. Normalmente não refletimos sobre essas bases, afinal, o cotidiano já é corrido o suficiente, mas precisamos dessa reflexão agora, pois, na educação remota, tudo se complicou: novos problemas surgiram, e problemas que já existiam ficaram aparentes.

Creio que estarei “chovendo no molhado”, principalmente para aqueles de vocês cujas escolas não fecharam inteiramente, mas acho que vale a pena chamar a atenção para o problema da hora-aula. Historicamente, a EaD passou por fases diferentes associadas às diferentes possibilidades das tecnologias disponíveis: na era do impresso, falou-se da “aula escrita”; a “aula gravada” chegou depois, com as possibilidades do rádio e da TV; mais adiante, em meios a processos de midiatização da educação, passou-se a falar da “aula dramatizada”, por exemplo, fruto de parcerias entre professores e produtores de TV/cinema. Agora, temos a internet e os softwares ou apps, e muita gente pensa que, com relativa facilidade, podemos substituir a experiência da aula presencial com aulas gravadas em cima de slides no PowerPoint ou, simplesmente, uma “cabeça falante”, criando vídeos caseiros para os alunos assistirem e, posteriormente, completarem folhas de exercícios. Mesmo com aulas gravadas com alta qualidade técnica e alunos mais maduros e independentes, esse modelo rapidamente se torna maçante, tedioso e desmotivador, pois implica a ausência de interação pessoal. Será que dá para continuarmos a trabalhar exclusivamente a partir dessa noção de hora-aula, exigindo alguma forma de “presença” de nossos alunos diante de um computador?

Em todos os modelos de EaD que eu conheço, o trabalho docente é pensado como tendo faces, papéis diferentes que são divididos e interpretados por atores diferentes, em tempos bem diferentes do que tivemos para fazer essa “virada on-line” a nós demandada pela emergência que estamos vivendo. O tempo de criação de um curso na EaD pode variar muito, como variam as estruturas institucionais, os processos e os atores envolvidos. Nesse contexto, a tutoria tem sido usada em praticamente todos esses modelos para resolver, digamos, o problema da interação. O tutor lida (ou deveria lidar) com grupos pequenos a partir de esquemas de ensino previamente determinados por outros professores. No momento, porém, somos, cada um, criadores de cursos, produtores de mídias e, crucialmente, tutores de grupos com números talvez muito maiores do que as pesquisas pertinentes indicam ser apropriado para interações on-line.

É claro que as habilidades necessárias para manipular essas mídias precisam ser desenvolvidas. É um processo de aprendizagem que não é simples, inclusive, para os jovens. Mesmo eles não nascem simplesmente sabendo como usá-las: o “nativo digital” é um mito criado no início do milênio em um contexto de marketing, desbancado logo depois por pesquisas empíricas. Apropriam-se, sim, de mídias, mas seus usos são limitados e, como todos nós, precisam aprender a utilizá-las.

Porém, penso que as questões mais importantes não são instrumentais, mas sim, conceituais. São nossas premissas, crenças e valores que determinam aquela “média” da qual falei antes: um aluno hipotético que compreenderá nossas explicações, manterá sua atenção e responderá às nossas demandas de engajamento. Os alunos também têm limites, possibilidades e demandas próprias, incluindo expectativas e pré-concepções sobre o papel deles e, em particular, sobre o nosso. Eles também têm noções sobre o que é aprender e o que é ensinar.

Para começar a fechar essa rápida introdução, então, gostaria de retomar a pergunta posta no início: “O que cabe no ensino remoto?”.

Acho que não há uma resposta única para essa pergunta, pois creio que precisamos pensar em detalhes de contextos específicos. Especificamente, precisamos pensar: quem é o público desse ensino? Na ES, pensamos exclusivamente nos estudantes, mas nas faixas etárias com as quais a EB lida, as questões de maturidade e independência são muito mais complicadas e críticas, e têm sido “resolvidas” indiretamente com a co-presença de pais ou responsáveis. Porém, uma simples substituição do presencial com horas passadas em frente ao computador para preencher as horas-aulas do cronograma da escola é problemático por diversas razões, incluindo os limites possíveis de atenção em diferentes faixas etárias (ou casos específicos), o papel do corpo e da interação pessoal no processo de aprendizagem, enfim, fatores outros que tendem a ficar obscurecidos quando nos preocupamos exclusivamente com “conteúdos” a serem “passados”. Já se fala sobre uma forma de “exaustão cognitiva” causada por horas de videoconferência. Além disso, exigir essa co-presença pode ser impraticável, pois as realidades das famílias em quarentena variam muito, inclusive pode não haver condições materiais para isso.

Pensarmos em “novas abordagens pedagógicas” pode ser útil. As ditas “metodologias ativas” têm despontado recentemente como grandes inovações a serem levadas às salas de aula: abordagens que dão protagonismo ao estudante, trabalhando a partir de formas que encorajem a motivação, a curiosidade, a independência do aprendiz. São várias possibilidades não tão novas em termos práticos, pois abarcam práticas comuns em diferentes áreas do conhecimento, que têm sido usadas com maior ou menor frequência dependendo, também, das possibilidades e demandas do contexto. Podemos, também, tentar pensar em formas de explorar o cotidiano do aluno como ponto de partida para tratar, talvez, temas e questões do momento atual. De qualquer forma, demanda-se aqui uma certa “mudança de cultura” para todos, inclusive nós mesmos, pois trata-se de bases conceituais bem diferentes daquelas com as quais temos trabalhado tradicionalmente.

A realidade é que todos nós estamos engajados em um processo de aprendizagem que pode ser mais ou menos desestruturante para cada um. Não estamos trabalhando pouco: o que tenho ouvido de colegas é que estamos trabalhando não apenas de formas fundamentalmente diferentes, mas, também, mais. Acho essencial que valorizemos muito a experiência que estamos tendo, por mais difícil que seja, e, crucialmente, que troquemos ideias com os colegas e, talvez, com nossos próprios alunos. Fazendo algumas críticas bem cortantes a políticas e programas de inclusão social a partir da inclusão digital, um dos pesquisadores mais conhecidos na área em que atuo propõe iniciativas de base como um caminho talvez melhor. Os dados que ele usa mostram que gasta-se muito em grandes programas, mas os resultados são discutíveis. O que ele sugere é um “pensar junto” coletivo dentro de grupos específicos que conhecem seus problemas, seus limites e suas possibilidades. Talvez haja algo aqui para pensarmos também.

Por fim, queria dizer para vocês que, em uma conversa como esta que tive há umas semanas, um colega mencionou que sente falta do “olho no olho” com os alunos, um sentimento compartilhado entre todos nós que somos professores, acredito. Penso, contudo, que essa carência não pode ser o único aspecto a definir a experiência que estamos vivendo. Em meio à incerteza do momento, sinto que precisamos reconhecer e celebrar o que não é incerto e o que não está ausente, que é o comprometimento com o que fazemos. Nesse espírito, quero fechar com as palavras que uma professora em formação usou para fechar uma escrita reflexiva: ela deseja ser uma “professora que consiga fazer a aprendizagem escapar da sala de aula”. Achei uma linda conclusão e, talvez, um excelente começo para pensarmos novos caminhos para o nosso ofício agora e após o final da quarentena.

Algumas observações gerais partindo de questões que apareceram nos comentários:

  1. O pesquisador ao qual me referi é Neil Selwyn, e o texto que eu tinha em mente é um dos poucos trabalhos dele que foram traduzidos para o português: “O uso das TIC na educação e a promoção da inclusão social“. Vi alguns comentários perguntando sobre “grupos de conhecimento”, mas esse não é um conceito que eu conheça. Há as ideias de “comunidade de prática” e “comunidades de aprendizagem”, mas eu estava me referindo a “projetos ou iniciativas de base” (em inglês, grassroots projects).
  2. O trabalho de Selwyn integra o conjunto de textos que tenho utilizado com meus alunos para contextualizar questões da área da Educação e Tecnologia (aliás, aproveito para deixar um esclarecimento: “autores” não são referencial teórico – um erro frequente que vejo em resumos de artigos e propostas de pesquisa…). Para um recorte da base teórica com a qual tenho trabalhado, veja aqui, e, para outras sugestões de leitura, veja a categoria Material para Estudo.
  3. Sobre “nativos digitais”, há algumas indicações de leitura aqui.
  4. Foi levantada uma questão sobre a possiblidade desse “ensino remoto” corrente estar contribuindo para a precarização da nossa profissão, junto com uma segunda pergunta relativa a “como podemos pensar as TIC” nesse contexto. Não discutimos essas perguntas diretamente, mas algo que sugeri, em meio à discussão, é que talvez precisemos parar de tentar pensar em problemas genéricos e “enormes”, sem especificidades, sem empiria, sem exemplos, parar de elocubrar de forma abstrata e sem relação direta com as “coisas” do mundo, como se a educação existisse em um “vácuo” . Não estou dizendo que não há precarização (e, pior, possibilidades, ou, minimamente, uma “vontade” de substituição do professor por máquinas), mas sim dizendo que é preciso falarmos de exemplos, de casos específicos que ilustrem esses problemas. A Profa. Raquel Goulart Barreto , da UERJ, tem conduzido essa discussão a partir de textos de políticas públicas – esse é um tipo importantíssimo de empiria , mas há outros. Selwyn, por exemplo, discute múltiplos exemplos em seu mais recente livro, Should robots replace teachers?. A própria forma que toma a pergunta do título indica que não se trata de fazer previsões, mas sim de analisar o que está acontecendo para que possamos ter voz, fazer nossas escolhas e agir. Fazer previsões é uma forma discutível de “teorizar” (e adorei quando a Lucia disse que “não temos bola de cristal”, resposta que eu mesma já dei em outras ocasiões). Como disse também a Lucia, quando um problema é grande demais, para de ser problema. Concordo totalmente.

O dia depois de amanhã virá, mas o que estamos aprendendo hoje?

Esta postagem compartilha um esboço que fiz em preparação para a fala de abertura de uma roda de conversa por Zoom organizada ontem pela Rede de Apoio ao Docente da PUC-Rio. O encontro reuniu por volta de 60 professores das mais diversas áreas do conhecimento, incluindo alguns rostos conhecidos do Departamento de Educação e muitos outros que ainda não conheço pessoalmente, mas que, espero, o possa fazer em breve. A conversa foi mediada pela Profa. Erica Rodrigues, do Departamento de Letras.

Além de oferecer apoio pedagógico e técnico, a RAD e a CCEAD da PUC-Rio vêm promovendo uma série de eventos visando a apoiar o ensino remoto que a instituição passou a oferecer a partir de meados de março, quando se iniciou a quarentena no Rio de Janeiro. Há, também, diversas iniciativas dedicadas aos alunos, apoiadas pela Rede de Apoio ao Estudante (RAE) da universidade. Enfim, neste momento particularmente difícil que estamos vivendo, são espaços de troca essenciais, representativos do nível de mobilização da instituição (que também está atuando de forma concreta com auxílio às comunidades próximas do campus, além de alunos em situação de fragilidade).

Minha fala era apenas para abrir a conversa, mesmo, mas talvez haja nela elementos úteis a colegas de outras instituições que estão, como nós na PUC, começando a planejar o semestre que vem. De qualquer forma, aqui está, em uma postagem que integra as imagens que projetei e alguns links e ideias adicionais, no final.

Boa tarde a tod@s, e muito obrigada por estarem aqui. Agradeço, em particular, às Profas. Zena Eisenberg e Elisa Almeida, minhas colegas no Departamento de Educação que me fizeram o convite em nome da Rede de Apoio ao Docente (RAD).

Permitam-me uma apresentação ligeira: estou em meu quarto semestre na PUC, após sete anos como Professora Adjunta no PPGE da UNESA, onde coordenava a linha de pesquisas em Educação e Tecnologia, e, antes disso, outros quinze como Professora Pesquisadora na Open University do Reino Unido, que é uma instituição de Educação Aberta a Distância. Minha pesquisa se insere na área dos Estudos Críticos da Educação e Tecnologia, e tenho trabalhado com teorias do discurso, focalizando, em particular, nas metáforas associadas à construção da relação educação/tecnologia.

Nestes 15-20 minutos que tenho para abrir a nossa conversa, não vou entrar nem na seara dos futurólogos, nem na dos consultores profissionais. Há uma crescente variedade de matérias on-line, lives e até coletâneas que veiculam reflexões gerais, relatos de experiências e conselhos dos gurus da Educação a Distância e da Tecnologia Educacional. O que eu gostaria de fazer é apresentar algumas reflexões para que possamos, na sequência, conversar sobre assuntos pertinentes a este “dia depois de amanhã” que virá quando terminar a quarentena.

Acho que, pelo menos nós na PUC-Rio, já passamos daquele momento inicial de desorientação completa, daquela sensação de que temos que apagar um incêndio colossal: estamos trabalhando on-line há mais de dois meses, e penso que o momento atual é oportuno para trocarmos ideias que podem informar o nosso planejamento, que deverá começar em breve. Pelo que entendi de uma breve troca com a Elisa, essa proposta é consistente com as demandas sugeridas na roda de conversa da semana passada.

Bem, para quem gosta de cinema, parte do título que propus remeterá a cenas de um planeta Terra arrasado por uma catástrofe ambiental. Nesse cenário, ironicamente, um hemisfério Norte congelado encontra sua salvação em um hemisfério Sul. Talvez esteja aí uma representação caricata do que estamos a viver: uma forma de refúgio em práticas de uma modalidade que opera sem que professores e alunos estejam fisicamente juntos e que nem sempre é vista com bons olhos.

Modelo das arcas para a preservação da espécie humana em 2012.

Um outro cenário apocalíptico é o de 2012. Neste filme, o drama também se desenrola a partir de uma crise ambiental; nesse caso, havia um projeto secreto multinacional que construíra embarcações destinadas a preservar o melhor da humanidade quando a tragédia finalmente se concretizasse. Obviamente, não há arcas para todos, mas o filme nada mostra sobre as considerações envolvidas nas “escolhas de Sofia” prévias: simplesmente seguem-se (não sem percalços, obviamente) caminhos já traçados, como se tem discutido agora em relação às escolhas que possivelmente terão que ser feitas (ou que já estão sendo feitas) por profissionais da saúde.

Na docência, não lidamos com escolhas de vida ou morte, então não temos o mesmo tipo de urgência, mas estamos também diante de escolhas, dilemas e paradoxos. São escolhas difíceis, pois, no dia depois do amanhã ainda incerto que será o final desta pandemia, creio, não seremos os mesmos, nem habitaremos o mesmo mundo de antes. Na verdade, meu primeiro pensamento, ao receber a circular de fechamento do campus, foi que não estaríamos todos no mesmo barco, para começar. Em 2012, não havia arcas suficientes para toda a humanidade, e esse parece ser o caso da educação durante a quarentena, infelizmente. E os que são deixados de fora não são apenas os despossuídos, pois uma gama de problemas anteriores parece ter sido exacerbada, incluindo questões de saúde mental, que se somam a outros problemas trazidos pela quarentena.

Emojis de profissões

Para mim, a situação ilumina um aspecto talvez negligenciado de nossa profissão: como formadores, somos também, de algumas formas, cuidadores. Juntos, formamos engenheiros, cientistas, professores e muitos outros profissionais, mas, como ser profissional é uma face importante de ser no mundo, contribuímos fortemente, na realidade, para formar pessoas. Foi pensando assim que as minhas primeiras preocupações diante do que se apresentava em meados de março convergiram em torno da necessidade de encontrarmos formas de permanecermos humanos, dosando as demandas que iríamos impor a nossos alunos e a nós mesmos.

Pois a quarentena acabará, mas o que será, como será, quando será, esses são assuntos já em discussão por colegas bem mais afeitos à futurologia do que eu. Porém, os cenários que eles têm desenhado, em geral, não são particularmente animadores, como não são animadores os cenários de uma educação mercantilizada, uma realidade que mobiliza grandes números de atores e grandes cifras. Nesse contexto, porém, temos problemas cotidianos imediatos e prementes a tratar – “o que fazer nas aulas da semana que vem?” Mantendo uma dose de otimismo, penso como Neil Selwyn, um sociólogo inglês muito conhecido na minha área de pesquisa, que é bastante enfático ao falar sobre a importância das escolhas que os professores fazem agora como contribuições que podem, sim, ajudar a moldar o depois da educação.  

Nas duas últimas semanas, tenho acompanhado as notícias relativas a uma empresa de Educação Superior que, na esteira da implantação (silenciosa) de um sistema de Inteligência Artificial para a correção automática de trabalhos de alunos , despediu mais de uma centena de professores, apenas para abrir novas contratações posteriormente, mas para funções ainda mais precarizadas. Pois discutindo, exatamente, a expansão de sistemas baseados em AI, uma grande preocupação mundo afora, Selwyn enfatiza, como sempre, a necessidade da desconfiança como uma forma inicial de resistência.

Selwyn vem falando, há pelo menos duas décadas, sobre a necessidade de desconfiarmos de certas premissas que têm sido tomadas como verdades na educação contemporânea. Por exemplo, somos constantemente convocados a inovar (ou morrer?), e a inovação na educação toma a forma de uma mudança de centro das ações pedagógicas (do professor para o aluno) e, consequentemente, de método (e fala-se muito de metodologias ativas), bem como de ferramentas (“Usem artefatos digitais!”).  Impera o “solucionismo tecnológico”: a ideia de que artefatos tecnológicos seriam a solução dos problemas e uma educação quebrada.

O proselitismo do novo que caracteriza essa convocação à inovação não é, obviamente, uma peculiaridade da educação, mas temos empresas, grandes e não tão grandes, e seus evangelistas a nos oferecer produtos que irão teoricamente melhorar nossa performance. No cenário que desenham, com frequência, professores figuram como peças imperfeitas e substituíveis. Existimos, cada vez mais fortemente, inclusive nos discursos das políticas públicas, como parte de um maquinário em transformação ou progresso rumo a maiores eficiências.

Nesse contexto, já era grande a minha preocupação com a fragmentação e a desumanização da nossa profissão bem antes de entrarmos na emergência atual. Pois bem, exatamente por força das circunstâncias, tivemos que inovar, e os artefatos digitais têm sido realmente essenciais para podermos continuar a agir e interagir.

Para muitos de nós, essa é a primeira experiência com mídias digitais na educação e com a educação não-presencial. A esta altura, porém, creio que todos já tenhamos feito as pazes com um horizonte sem mudanças no semestre corrente. Crucialmente, não sabemos o que o próximo semestre trará: só sabemos que precisaremos planejá-lo em breve.

Daí, então, surge a pergunta que eu gostaria de propor para a nossa conversa: o que estamos aprendendo com as ações emergenciais que temos conduzido?

A partir dessa questão, proponho três desdobramentos – não quero sugerir nem hierarquização, nem completude nesse conjunto de perguntas; de fato, espero que vocês sugiram outras, mas aqui estão as três para começarmos.  Farei apenas alguns comentários para cada uma, e passaremos à conversa.

1) O que estamos aprendendo sobre as tecnologias digitais que estamos usando?

Os artefatos à nossa disposição modificam profundamente a experiência da socialização e da interação. Por exemplo, o Zoom, que a instituição garantiu para nós, tem sido ótimo, de algumas formas, mas há diferenças significativas em relação à interação presencial (inclusive já há discussões sobre a forma de “exaustão cognitiva” que parece/pode causar). Esse meme reverbera algumas percepções correntes.

Tenho usado a plataforma semanalmente, com o tempo um pouco reduzido, com a minha turma de pós, mas, na graduação, apenas mensalmente, dividindo a turma em grupos  menores (são 34 no total), e o retorno que recebo deles é misto; os comentários menos animadores têm vindo de alunos com problemas de conexão à internet ou que acham que a videoconferência invade a sua privacidade. Eles me contam sobre pequenos atos de “desobediência civil” que me fazem rir, como foi o caso do meme ao lado, mas acho que temos aqui questões muito importantes a serem pensadas.

E-mail e fóruns de Web (os fóruns do Moodle têm esse formato) também podem ser bons em algumas situações; de fato, as mídias assíncronas são a primeira escolha na EaD, que precisa operar a partir de requisitos tecnológicos mínimos para cumprir demandas de inclusão. A pesquisa na área de Comunicação Mediada por Computador (CMC) já vem da década de 1980, e há relatos que defendem ideias como “massa crítica” (número mínimo de participantes para que haja interação) e “teto” (número máximo de participantes para que não haja caos) para considerarmos.

Acho importante esclarecer que, apesar de estarmos nos referindo a “ações emergenciais”, “ensino não-presencial”, “ensino remoto”, enfim, expressões que cuidadosamente omitem a palavra “distância”, é difícil evitarmos a dicotomia presença-distância e as alusões à EaD, como demonstraram os múltiplos memes que circularam no final de março (EaD = “Estresse a Distância”, “Enganação a Distância” etc.). Nesse sentido, acho relevante pensarmos sobre a constituição de diferentes formas de presença e distância no ensino-aprendizagem, pois enormes distâncias podem existir em sala, assim como diferentes modos de presença podem ser construídos por meio de ambientes puramente textuais.

Fazer escolhas aqui significa aprendizagem para nós, pois, para além de termos que vencer questões instrumentais (como fazer o quê), também temos que nos adaptar aos tipos de conversas possíveis por meio das mídias que usamos. E mais: precisamos ensinar os alunos a conversar dentro dessas novas possibilidades (ou restrições). Essas não são questões triviais.

2) O que estamos aprendendo sobre nós mesmos como professores?

Como professores, criamos programas ou planos de disciplinas a partir de ementas integradas em matrizes curriculares. Nossa atuação segue diretrizes e concepções consistentes com as demandas de nossas respectivas áreas. Mas nossa atuação revela mais: nossas ações docentes materializam nossas formas de pensar sobre o que é ensinar, e revelam o que pensamos ser aprender. Em outras palavras, nossas concepções de ensinar e de aprender, com frequência tácitas, estão sempre em jogo e “à mostra”, digamos, em nossas ações.

Permitam-me indicar alguns exemplos que ilustram essas ideias. Em nosso vernáculo docente, falamos de nossos currículos como constituídos de “conteúdos” que “expomos”, “passamos” ou “transmitimos” aos alunos, que aprendem “absorbendo” ou “digerindo” o que lhes oferecemos. Trata-se, aqui, de metáforas muito poderosas, porém, adormecidas, ou seja, não mais pensadas como metáforas, mas que constituem bases sobre as quais construímos muitas de nossas ações. Concretizam-se na aula expositiva mais tradicional, no âmbito da hora-aula em sala, nas baterias de exercícios, nos tipos de atividades ou problemas que propomos aos alunos, enfim, em tudo que fazemos.

No momento, porém, em parte por limitações das próprias mídias que estamos usando, e em parte por questões de ordem prática, tornou-se, para mim, um ponto para reflexão a ideia da hora-aula do presencial compreendida como aquele intervalo de tempo que passamos juntos com nossos alunos em um espaço compartilhado. Quando planejada, a EaD se concentra em estimativas das horas de estudo que o aluno precisará; no presencial, isso nos passa despercebido. Há, por esse motivo, uma preocupação constante em marcar o ritmo desse estudo com um cronograma que preveja a criação de produtos para avaliação continuada. A co-presença pode tomar outras formas (por exemplo, a aula escrita de Holmsberg, a tele aula gravada, tão comum nos MOOC, os “Cursos Online Abertos e Massivos” de grandes instituições internacionais, a aula dramatizada que usa formatos do cinema e da TV, enfim, uma variedade de possibilidades).

A questão aqui não é apenas conhecimento de estratégias didáticas. É claro que um repertório de técnicas variadas, associadas à produção com fins de acompanhamento do progresso dos alunos, pode ser muito útil : Diários de Aprendizagem (ou de bordo), que encorajam a tomada de notas, escrita e reflexão; estudos dirigidos, que indiquem especificidades de textos (ou outros recursos) a serem tratadas; projetos; trabalhos (estruturados em etapas) para pequenos grupos; novidades como Webquests, jogos, etc. A lista é longa e cada área já tem tanto preferências, quanto práticas tradicionais, e não vejo motivo para que elas sejam simplesmente ignoradas e/ou consideradas “antiquadas”, pois, para mim, o cerne da questão não é técnico, mas, sim, conceitual: nossos valores, premissas e crenças. Há questões de poder envolvidas, também, pois operamos em múltiplos contextos – áreas de conhecimento diferentes, níveis diversos de organização da instituição em que nos inserimos, etc. As próprias mídias e políticas veiculam expectativas e “senso comum” sobre a educação. Enfim, para mim, a questão é de valores, premissas e crenças enraizados em história e política.

3) O que estamos aprendendo sobre o nosso público?

Nosso público – os alunos – são nossa razão de ser! Muitos de nós também estamos envolvidos em pesquisa, mas, mesmo na pesquisa, nosso papel como formadores é central. Nesse sentido, uma premissa que talvez tenhamos em comum seja que não queremos “nenhum (aluno) a menos”. Aqui vamos ao encontro da instituição com esforços no sentido de minimizar a evasão, é claro, mas evasão é um problema complexo, e mesmo que nosso papel seja chave, nosso alcance e responsabilidade são limitados.

Na EaD, de forma geral, por mais que os estudantes sejam surpreendidos ao ingressar, por mais dificuldades que tenham, partimos de um acordo tácito básico sobre o modelo de ensino-aprendizagem, uma forma de “contrato”. Esse modelo exige alunos minimamente dispostos a se apropriarem de sua aprendizagem.

Não era esse, porém, o nosso “acordo” no início do ano, sem contar que as expectativas de nossos alunos quanto ao seu próprio papel no processo de aprender variam muito, como variam suas habilidades.

Gostaria de ouvir os relatos de vocês sobre isso. De minha parte, com uma turma de graduação composta principalmente de calouros, ficaram patentes os problemas decorrentes do despreparo em termos de organização, leitura, escrita, enfim, habilidades básicas. As expectativas que trazem sobre o que é aprender são coloridas por suas experiências de escolarização, e a ideia predominante é a de que só se aprende em sala, ouvindo a voz do professor. Dizer-lhes que aprendem também conversando sobre a última aula na padaria da esquina causou completa surpresa.

Meme do bolo de chocolate

Para essa turma, escolhi trabalhar assincronamente, principalmente, por questões de acesso. Ficaram muito claros os problemas de letramento, e a minha tecla predileta tornou-se a “moral” do “Meme do bolo de chocolate”. Usei o meme, mas ainda preciso refletir sobre sua utilidade. A maioria reagiu com risadas, mas continuam a perguntar do que é feito o bolo, alguns “publicamente”, no grupo de trabalho, outros individualmente, por WhatsApp. Crucialmente, por esse meio, fiquei sabendo que se organizam em grupos de apoio separados (exclusivos e exclusivistas), e terminei conhecendo a situação de cada um de uma forma que jamais conheceria presencialmente.

Areias de uma praia em Maui: macro e micro fotografias

Em áreas diferentes, lidamos de formas diferentes com nossas turmas, mas creio que sempre há uma dose de adaptação de nossa perspectiva. Modulamos a distância que mantemos de acordo com as demandas e as possibilidades do momento. Modificamos nossa perspectiva das turmas, seus agrupamentos e seus indivíduos. Como nessas imagens das areias de uma praia em Maui em duas fotos que sempre uso em minhas disciplinas, ajustamos nossa perspectiva do nosso público: de um lado, uma perspectiva macro, distante; de outro, um olhar mais próximo, micro, que revela enorme diversidade.

Agora quero passar a palavra para vocês, mas gostaria de fechar com trechos de um trabalho de aluna que me “resgatou” de uma semana difícil. Em sua escrita reflexiva, disse: “Aulas expositivas podem ser chatas, se forem muitas e longas, mas não dá para aprender nada se o professor não fizer a exposição de ideias novas”, questionando algo que eu havia dito sobre metodologias ativas. Na sequência, ressaltou ser importante que o aluno “esteja sempre aberto e atento”, sugerindo uma compreensão da importância da escuta ativa do aluno, sem deixar de fora o professor. Por fim, disse querer ser uma “professora que consiga fazer a aprendizagem escapar da sala de aula”. Achei uma linda conclusão e um excelente começo.

Algumas notas adicionais

Quero deixar duas recomendações de leitura sobre “presença”: a) “Sobre presença e distância – reflexões filosóficas acerca da formação online“, de Lílian do Valle e Estrella Bohadana; essa é uma versão apresentada em anais da reunião nacional da Anped de 2010, mas outra versão foi posteriormente publicada no livro Educação a Distância: elementos para pensar o ensino-aprendizagem contemporâneo, org. por Daniel Mill (2013); b) “O Facebook na educação: um novo sujeito?“, artigo de coautoria minha com Estrella Bohadana publicado na revista Educação e Cultura Contemporânea. Deixo essa auto-citação porque levei a minha turma de graduação para o Facebook (mas acho que não mencionei isso ontem – só disse que estava trabalhando assincronamente), onde já tive (e vi) experiências de ensino-aprendizagem muito produtivas e interessantes. Em outra ocasião postarei os detalhes da experiência.

Mencionei a questão da privacidade, mas um assunto importantíssimo que não mencionei (e ninguém levantou): questões de direitos autorais. Estou há tempos para buscar orientações sobre o uso de memes (sem autoria?), mas tenho também preocupações relativas aos muitos materiais que estamos produzindo, incluindo vídeos gravados no Zoom (que mostrariam, também, imagens e vozes de alunos, sugerindo outras questões). Já começou a discussão nos EUA, onde muitas instituições oferecem Recursos Educacionais Abertos e MOOC. Aqui, o cenário é diferente, mas acho que precisamos nos mobilizar para compreender melhor o que estaria em jogo.

Por fim, um assunto que mencionei durante a discussão e que acho central ao processo de fechamento do semestre atual: a necessidade de valorizarmos muito (nós, professores) a experiência que estamos tendo e, crucialmente, discutir esse ponto com nossos alunos. Não estamos trabalhando pouco (nem nós, nem nossos alunos!): o que tenho ouvido de colegas é que estamos trabalhando não apenas de formas fundamentalmente diferentes, mas, também, mais. Todos estamos engajados em um processo de aprendizagem que pode ser mais ou menos desestruturante para cada um. Na conversa, um colega mencionou que sente falta do “olho no olho” com os alunos, um sentimento compartilhado entre todos, acredito, mas também creio que essa carência não pode ser o único aspecto a definir a experiência que estamos vivendo. Em meio à incerteza do momento, sinto que precisamos reconhecer e celebrar o que não é incerto e o que não está ausente: a dedicação, o comprometimento e os esforços de todos!

A EaD como “Estresse a Distância”? Não, por favor, permaneçamos humanos…


Meme compartilhado por uma aluna em um grupo privado que criei no Facebook para a minha turma da graduação

Acabei de trocar mensagens com o António Moreira Teixeira , colega da Universidade Aberta de Portugal e um dos curadores de um ótimo site desenvolvido por uma comunidade de pessoas envolvidas em iniciativas e/ou instituições de Educação a Distância, o Ensinar a Distância. António havia me convidado para contribuir com essa curadoria, mas, até agora, eu estava metaforicamente afogada em múltiplas tarefas relativas a essa “virada on-line” a ser mundialmente concretizada. Ironicamente, estou sem acesso fixo à internet neste exato momento: parece um bom momento para dar uma parada e tentar escrever.

Tenho tido muitas conversas com colegas e amigos (meus amigos mais próximos são, também, professores, e sou muito grata por essa nossa pequena rede de sanidade), e dizer que estamos todos no mesmo barco simplesmente não é realista. Estamos diante de um cenário anteriormente inimaginável (e olhem que sou fã de filmes de catástrofes – só nunca havia pensado que viveria em um…). As incertezas são múltiplas, e as tarefas diárias multiplicaram-se. Temos muito mais a fazer a respeito de tudo que já tínhamos que cuidar antes da chegada do atual tsunami. Porém, nada disso se dá da mesma forma para todos nós. E nesse “todos nós” quero incluir, em particular, os estudantes: pensando neles é que estou agora a escrever.

Nesse espírito, acho importante destacar algo que os colegas da EaD já sabem há muito: que a ideia da “aula”, em particular, da “aula expositiva”, não é diretamente transferível para contextos de ensino e aprendizagem não-presenciais. Os suportes tecnológicos que temos (e incluo aqui o livro impresso), de modo geral, criam e operam em outros tempos e espaços, demandando sujeitos – professores e alunos – outros, reconfigurados a partir de possibilidades de interação e mediação diferentes daquelas que podemos concretizar com a presença do corpo. Mesmo na Open University, onde vivi, entre o final da década de 1990 e meados da década de 2000, uma “virada on-line” que diminuiu drasticamente o contato presencial entre tutores e alunos, inclusive nas tradicionais escolas de verão, adoradas pelos estudantes, ficou claro que a presença física em locais específicos (por exemplo, laboratórios ou salas de aula, no caso da formação de professores) não poderia ser abandonada. Há quem ache que é apenas uma questão de termos artefatos mais sofisticados à nossa disposição. Eu penso que, na verdade, há muito que simplesmente não sabemos sobre a aprendizagem, com ou sem a mediação de artefatos digitais.

Para ser mais pragmática, a EaD tem um aspecto básico: em qualquer modelo (aqui é importante ressaltar que há muitos modelos), a etapa de planejamento e produção (de planos e ações pedagógicas, recursos, etc.) é mais longa e detalhada do que seria o usual na educação presencial. Crucialmente, não é uma modalidade para qualquer estudante: a literatura da área é repleta de ideias como “autonomia”, “auto-direcionamento”, “organização”, “motivação”, enfim, uma variedade de ideias problemáticas e discutíveis, mas que formam a base das concepções do “estudante” ao qual a EaD tem sido dirigida há décadas, em muitos casos, com bastante sucesso.

No momento, porém, ouço as narrativas dos meus alunos e, dentro da minha própria casa, observo cuidadosamente minha filha, também estudante universitária, a passar horas diariamente diante da tela do computador, oscilando entre uma forma de desespero – “aula” após “aula” no Zoom, além de leituras longas, listas de exercícios, enfim, excesso de demandas com prazos inexequíveis na melhor das épocas – e total desânimo no fim de dias que têm ido até bem tarde. E aqui temos boa conexão à Internet, além de múltiplos espaços para nos movimentarmos ao longo do dia, silêncio e tranquilidade (além de uma despensa bem provida), enfim, condições que não são universais. Ou seja: não aludo apenas a questões de exclusão digital, mas a reflexos das grandes desigualdades sociais.

Além disso, para minha filha, como para a maioria, quer sejam estudantes mais ou menos privilegiados, a socialização tomou, por força das circunstâncias, outras formas, inclusive os sítios riquíssimos de aprendizagem entre pares também são outros e não mais a cantina, a biblioteca ou o boteco da esquina. Foram-se as horas gastas todos os dias no transporte público, horas que, mesmo “no aperto” de um carro de metrô, podiam ser “desfrutadas” em leituras leves no celular, conversas com amigos ou, simplesmente, devaneios. E se esse tempo agora é vivido em casa, não o é de forma ociosa, pois o estudante também foi convocado a participar mais em um dia a dia inteiramente diferente do que todos imaginávamos estar a viver a esta altura.

Essa “virada on-line” começou no Brasil um pouco depois da Europa e EUA, acompanhando a chegada (ou identificação?) de casos da Covid-19 no país, mas eu já estava a seguir notícias em jornais e blogs especializados internacionais. No próprio Facebook, uma das vozes mais sensatas que conheço na EdTech, Audrey Watters, resumiu minha própria reação inicial à adoção de plataformas e “ferramentas” digitais a partir de (sabe-se lá quais) “abordagens pedagógicas a distância” com crianças em idade escolar: que ninguém morrerá se não aprender a tabuada de 7 este ano (no caso da minha filha, conjugar vários verbos em latim).

Contudo, pensar em uma suspensão completa de atividades me parece ser inviável, não apenas em uma perspectiva institucional (pensando aqui, sobretudo, em instituições privadas), mas, também (e crucialmente), humanista. A distância facilmente transforma pessoas em números em planilhas de apoio a falsas dicotomias (salvar vidas ou a economia?), mas professores tendem a enxergar pessoas: alunos com diferentes necessidades, demandas, questões e, em alguns casos, problemas previamente existentes (por exemplo, ansiedade, pânico, depressão, enfim, a lista é longa). Continuar o contato com colegas e professores pode ser, para alguns (ou muitos? Quem sabe?), uma âncora em meio à incerteza, oferecendo referências para a construção emergencial de novos cotidianos.

Instituições diferentes estão a adotar formas diferentes para descrever o que estão a fazer: “Educação não-presencial”, “Educação on-line”, “Educação digital”, etc. Enfim, os rótulos são múltiplos, como são os debates e disputas territoriais acadêmicas, mas uma coisa me parece certa: tudo que podemos fazer, na atual conjuntura, são, de fato, ações emergenciais, tentativas e, para muitos, inteiramente novas e experimentais. Não sabemos o que virá, mas sabemos o que se apresenta agora: todos queremos a sobrevivência de nossas respectivas instituições, mas ninguém quer adoecer ou, sobretudo, adoecer os estudantes.

Não faço aqui uma crítica às ações de colegas ou das determinações postas por instituições, todos preocupados com a situação a partir de suas perspectivas próprias. Para mim, a profissão docente é uma das profissões do cuidado com o outro e, assim, sob pressão e em destaque no momento. Não sei o quão generalizada é a situação de overload dos estudantes, mas talvez seja sintomático o meme que a minha aluna circulou. A partir disso, então, deixo um convite para que pensemos cuidadosamente sobre o que estamos a fazer, ouvindo as vozes dos nossos estudantes e a eles explicando, nos limites do razoável, perspectivas que eles próprios não podem ter. Se a proverbial corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco, focalizar meramente em tecnologias e em “transposição” é uma armadilha que precisamos evitar para permanecermos humanos.