Entre a ficção e a realidade: uma experiência

No 7o Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídias, que aconteceu on-line na semana passada, apresentei, junto com alguns dos integrantes do DEdTec, um relato sobre o trabalho que conduzimos em 2020.2: Uma experiência de formação com a ficção durante a pandemia: da distopia à esperança. Eis a proposta original:

Apesar da euforia em torno das tecnologias de internet como meios para manter as instituições educacionais em funcionamento durante a pandemia de covid-19, a realidade representada em relatos de jornais, blogs e artigos científicos é bastante diversa. Mundo afora, vidas estão sendo profundamente afetadas (ou, infelizmente, perdidas), e, no âmbito da educação em um país com desigualdades tão marcantes quanto o nosso, professores e estudantes têm enfrentado desafios, em alguns casos, intransponíveis. Mais do que nunca, talvez, a profissão docente se revela como uma das profissões do cuidado: somos formadores de seres humanos. Em particular, na crise que estamos vivendo, nossas propostas pedagógicas precisam superar uma visão “conteudista” do currículo e considerar as possibilidades e limites do aqui e agora, integrando-as, na medida do possível, em nossas ações junto aos nossos alunos.

Nesse sentido, esta proposta baseia-se em uma reflexão sobre uma experiência conduzida, no segundo semestre de 2020, com um grupo de estudantes em processo de formação para a pesquisa em Educação. Na esteira de experimentações anteriores (por ex., Ferreira et al. 2020; Rosado et al, 2015), e inspirada em literatura que explora o potencial da ficção como um recurso formativo (por ex., Aquino & Ribeiro, 2011; Lemos, 2016), a experiência em questão teve dois objetivos principais: (1) apoiar o desenvolvimento de criticidade acerca da relação entre a educação e a tecnologia, utilizando cenários ficcionais que exploram a relação entre humano e máquina; (2) proporcionar um espaço de discussão que possibilitasse a articulação entre o acadêmico e o não acadêmico, sobretudo o pessoal e o vivido. Nesse sentido, foram selecionadas algumas obras de ficção distópica como base do trabalho do grupo ao longo do semestre, complementadas com textos acadêmicos (incluindo Postman, 2005 [1985], Coeckelbergh, no prelo; Haraway, 2009 [1991], dentre outros).  

As seguintes obras foram examinadas em encontros síncronos semanais: (a) Autofab, episódio do seriado Electric Dreams que revisita e atualiza, para o nosso momento de expansão da Inteligência Artificial e criação de robôs antropomórficos, o conto de Phillip K. Dick escrito na década de 1950, quando os temores da humanidade tinham por objeto a tecnologia nuclear; (b) Frankenstein, de Mary Shelley, um clássico da literatura gótica vitoriana considerado o precursor da ficção científica; (c) Metropolis, de Fritz Lang, um clássico do expressionismo alemão que, além de constituir um marco na história do cinema, permanece intensamente relevante em sua exploração da relação entre tecnologia e sociedade; e (d) Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, uma obra publicada em 1932 de notável presciência, que mantém viva sua atualidade, em particular, no que diz respeito às decorrências do avanço tecnológico para a reprodução biológica e sociocultural, conforme destacou Postman (2005 [1985]).

A apresentação aqui proposta irá abordar: (a) os fundamentos teórico-conceituais e a metodologia planejada para a experiência; (b) leituras do grupo a partir das obras (e articulações entre elas), focalizando em formas nas quais essas obras podem nos ajudar a compreender e questionar o contexto atual mais amplo no qual a educação se insere; (c) questões imbricadas nos processos comunicacionais remotos síncronos em um contexto considerado, em si mesmo, distópico. Nele, a experiência mostrou-se não apenas um exercício intelectual, mas sim uma exploração criativa e fortemente solidária, que acolheu e promoveu a reflexão individual e a construção compartilhada de significados em/sobre um contexto desafiador e circunstâncias, com frequência, delicadas. Assim, em uma perspectiva mais ampla, a experiência constitui-se em um exemplo de como a reflexão a partir de narrativas distópicas pode se tornar um alicerce para a humanização, a resistência e, quiçá, a esperança.

Palavras-chave: educação superior na pandemia; distopia; ficção científica; formação de pesquisadores

Referências

AQUINO, J.G.; RIBEIRO, C. (Org.). A Educação por vir: experiências com o cinema. São Paulo: Cortez, 2011.

AUTOFAC (Temporada 1, ep. 8). Electric Dreams [Seriado]. Direção: Peter Horton. Podução: Channel 4 Television Corporation e Sony Pictures Television, 2017. 1 vídeo (51 min).

COECKELBERGH, M. Antropologias do monstro e tecnologia: máquinas, ciborgues e outras ferramentas tecno-antropológicas. In: BANNELL, R.I.; MIZRAHI, M.; FERREIRA, G.M.S. (Org.) Deseducando a educação: mentes, materialidades e metáforas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, no prelo.

DICK, P.K. Autofab. In: DICK, P.K. Electric Dreams. Trad. Daniel Luhmann. São Paulo: Aleph, 2017 [1955].

FERREIRA, G.M.S. et al. Estratégias para resistir às resistências: experiências de pesquisa e docência em Educação e Tecnologia. e-Curriculum, v. 18, n. 2, p. 994-1016, 2020. Disponível em: < https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p994-1016 >. Acesso em: 15 jan. 2021.

HARAWAY, D. O manifesto ciborgue. In: Tadeu, T. (Org.) Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Trans. Tomaz Tadeu. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 [1991].

HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Trad. Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. Porto Alegre: Ed. Globo, 1979 [1921].

LEMOS, D.C.A. (Org.) Distopias e Educação. Entre ficção e ciência. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2016.

METROPOLIS. Direção: Fritz Lang.  Produção: Erich Pommer. Alemanha / Finlândia: Universum Film / Yleisradio, 1927/2010. 1 DVD (153 min.).

POSTMAN, N. Amusing ourselves to death. Public discourse in the age of show business. 20th anniversary edition. Nova York; Londres: Penguin, 2005 [1985].

ROSADO, L.A.S. et al. De Metropolis a Matrix: arte e filosofia na formação de pesquisadores em educação. Leitura: Teoria e Prática, v. 33, n. 54, p. 97-110, 2015. Disponível em: < https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/371/272 >. Acesso em 15 jan. 2021.

SHELLEY, M. Frankenstein, ou o Prometeu moderno. Trad. Bruno Gambarotto. São Paulo: Hedra, 2013 [1818].

Os slides da apresentação podem ser baixados neste link.

Infelizmente, meu parceiro nessa aventura de trabalho com filmes e livros, o Prof. Márcio Lemgruber, não conseguiu estabilizar sua conexão à Internet na hora da sessão e, assim, não conseguiu participar, mas eu e Kadja Vieira, mestranda no DEdTec, fizemos a apresentação. Kadja criou o layout para os slides, deixando apenas alguns detalhes para eu finalizar, pois já tínhamos aproveitado a primeira sessão de discussão do grupo neste semestre para organizar as ideias, até porque há muita gente ingressando no grupo agora e achei importante darmos uma ideia ao pessoal novo sobre os caminhos que trilhamos no ano passado.

As perguntas que recebemos foram bastante interessantes e permitiram que elaborássemos um pouco mais as ideias, tanto sobre a experiência em si, quanto sobre as pesquisas em andamento. Gostaria, porém, de dar destaque às respostas dadas por minhas orientandas, que mostraram como a experiência tem sido, de fato, produtiva: como orientadora (professora, de forma mais geral), não espero que meus alunos saiam pelo mundo repetindo o que digo (aqui lembro sempre do amigo Alexandre Rosado, com quem compartilho um horror a sectarismos acadêmicos), mas que se apropriem das ideias com as quais têm contato por meu intermédio e, principalmente, que as questionem sempre. As palavras das três – Kadja, Juliana e Cristal – sugeriram que estamos mesmo a caminhar dessa forma, o que me deixou bastante satisfeita.

Quero também ressaltar o papel fundamental do Prof. Márcio no processo que tem permitido que nosso espaço de discussão vá se constituindo como um espaço livre, protegido, acolhedor e fortemente dialógico: temos uma crença compartilhada de que é mais importante dizer algo sobre o que alguém disse do que simplesmente repetir o que já foi dito, sempre, obviamente, de forma consistente com o momento de formação de cada um. Por outro lado, não abandonamos o papel que nos cabe, como docentes, no sentido de dar apoio e direcionamentos possíveis a cada um que embarque na construção desse caminho que pensamos ser a criticidade.

Tem sido um privilégio estar com ele e com todos que escolhem permanecer no grupo, e é desse estar junto, mesmo que on-line, que a esperança vai se nutrindo – como disse o escritor Ítalo Calvino no fechamento de seu maravilhoso As Cidades Invisíveis,

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